Olheiros e Escutas
Interrompeu-nos o rumor de um carro na chácara. Veio um escravo dizer que era a baronesa X. Virgília consultou-me com os olhos.
— Se a senhora está assim com dor de cabeça, disse eu, parece que o melhor é não receber.
— Já se apeou? perguntou Virgília ao escravo.
— Já se apeou; diz que precisa muito de falar com sinhá! — Que entre!
A baronesa entrou daí a pouco. Não sei se contava comigo na sala; mas era impossível mostrar maior alvoroço.
— Bons olhos o vejam! explodiu ela. Onde se mete o senhor que não aparece em parte nenhuma? Pois olhe, ontem admirou-me não o ver no teatro. A Candiani esteve deliciosa. Que mulher! Gosta da Candiani? E natural. Os senhores são todos os mesmos. O barão dizia ontem, no camarote, que uma só italiana vale por cinco brasileiras. Que desaforo! e desaforo de velho, que é pior. Mas por que é que o senhor não foi ontem ao teatro?
— Uma enxaqueca.
— Qual! Algum namoro; não acha, Virgília? Pois, meu amigo, apresse-se, porque o senhor deve estar com quarenta anos... ou perto disso... Não tem quarenta anos?
— Não lhe posso dizer com certeza, respondi eu; mas se me dá licença vou consultar a certidão de batismo.
— Vá, vá... E estendendo-me a mão: — Até quando?
Sábado ficamos em casa; o barão está com umas saudades suas...
Chegando à rua, arrependi-me de ter saído. A baronesa era uma das pessoas que mais desconfiavam de nós. Cinqüenta e cinco anos, que pareciam quarenta, macia, risonha, vestígios de beleza, porte elegante e maneiras finas. Não falava muito nem sempre; possuía a grande arte de escutar os outros, espiando-os; reclinava-se então na cadeira, desembainhava um olhar afiado e comprido, e deixava-se estar. Os outros, não sabendo o que era, falavam, olhavam, gesticulavam, ao tempo que ela olhava só, ora fixa, ora móbil, levando a astúcia ao ponto de olhar às vezes para dentro de si, porque deixava cair as pálpebras; mas, como as pestanas eram rótulas, o olhar continuava o seu oficio, remexendo a alma e a vida dos outros.
A segunda pessoa era um parente de Virgília, o Viegas, um cangalho de setenta invernos, chupado e amarelado, que padecia de um reumatismo teimoso, de uma asma não menos teimosa e de uma lesão do coração: era um hospital concentrado. Os olhos porém luziam de muita vida e saúde. Virgília, nas primeiras semanas, não lhe tinha medo nenhum; dizia-me que, quando o Viegas parecia espreitar, com o olhar fixo, estava simplesmente contando dinheiro. Com efeito, era um grande avaro.
Havia ainda o primo de Virgília, o Luís Dutra, que eu, entretanto, agora desarmava à força de lhe falar nos versos e prosas, e de o apresentar aos conhecidos. Quando estes, ligando o nome à pessoa, se mostravam contentes da apresentação, não há dúvida que Luís Dutra exultava de felicidade; mas eu curavame da felicidade com a esperança de que ele nos não denunciasse nunca.
Havia,enfim, umas duas ou três senhoras, vários gamenhos, e os fâmulos, quenaturalmente se desforravam assim da condição servil, e tudo isso constituíauma verdadeira floresta de olheiros e escutas, por entre os quais tínhamos deresvalar com a tática e maciez das cobras.