Sorvete

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Você é como um sorvete de casquinha, só que sem o sorvete.

...

Já tem um tempo que eu ando observando demais aquela garota. Uns... dois meses? É muito? Não acho nem muito, nem pouco. Acho tempo suficiente para eu tomar uma atitude, sair da zona dos stalkers e ir lá falar com ela.

Ainda não me apresentei. Meu nome é Daniel, sou um mero estudante de terceiro ano do Ensino Médio em uma escola qualquer. Vamos dizer que sou um ser humano "na média": não sou interessante, mas não sou entediante demais de manter uma conversa; não sou bonito como muitos, mas garanto que não sou tão feio pra ficar me escondendo tanto; não sou uma pessoa cem por cento boa, pois confesso que, quando o Caio, um rapaz que odeio de todo o coração, passa por algum tipo de sufoco, eu gargalho por dentro como um verdadeiro monstro, mas garanto que, com os outros, sou bem agradável, ofereço ajuda...

Ela, por outro lado, é sinônimo de perfeição. Júlia deveria virar um elogio, tipo "Nossa, você está tão Júlia hoje!" Eu não sou da turma dela, mas, pelo que percebo, ela parece ser daquelas bem inteligentes, prestativas, amigáveis... fora que ela, pelo que consegui vasculhar nos seus perfis, curte as bandas que eu gosto, os filmes que eu assisti... só tem uma coisa ou outra que não bate muito bem, mas eu tenho uma chance de conversar com ela pela primeira vez após dois meses.

O sinal do término da aula bateu e, como eu já estava ficando cheio de fome de tanto planejar uma maneira de falar com ela sem tremer muito, fui direto pro refeitório. Peguei o almoço que eles estavam servindo no dia e fui direto para uma mesa mais vazia.

Para a minha surpresa, ela veio e se sentou ao meu lado.

Meu coração disparou. Falo ou não falo com ela? Eis a questão.

- Err... Júlia, né? - perguntei, tentando disfarçar o fato de eu saber até o número dela, mesmo nunca tendo trocado uma palavra sequer.

- Sou sim. Você é o...? - ela perguntou, passando um misto de curiosidade e doçura.

- Daniel. Prazer. - disse, quase gaguejando. Quase.

- Eu tenho a impressão de nunca ter te visto. - ela disse, me analisando rapidamente com seus olhos castanhos - De qual turma você é?

- 3001. Você é da 3003, né?

- Sim, uma das melhores turmas. - ela disse, parecendo orgulhosa de fazer parte da 3003. Não era mentira: todos os professores elogiavam a 3003.

- E como é estar perto de tanta gente talentosa? - perguntei apenas para tentar fazer o assunto andar. Falar com ela era como a realização de um sonho.

- É muito legal! - ela exclamou, parecendo totalmente feliz - Eu entrei nessa escola esse ano, mas eles já me elegeram como representante de turma, tenho vários amigos... é maravilhoso.

- Eu imagino... - respondi, sem graça - Eu me pergunto, você também gosta de música?

- Claro! Eu sou muito eclética... é assim que se fala, né? - ela perguntou, como se não fizesse a mínima ideia do que significava essa palavra, mas eu apenas assenti com um gesto - Então, eu gosto de vários tipos de música, menos pop e MPB. Odeio muito esses gêneros.

Espera, o quê?

Eu já fucei demais o perfil dela para não saber de cabeça que ela dizia adorar música pop e valorizar a cultura brasileira. Como assim ela chega agora e diz que não gosta?

- Sério que você não gosta? - acabei exteriorizando minha surpresa.

- Sério mesmo. Acho muito modinha e eu odeio modinha. Não me leve a mal se você gosta, tá?

- S-Seus amigos... também pensam assim?

- Não. - ela fez uma cara de imenso tédio - Eles gostam, adoram, pra falar a verdade. Dá ânsia de vômito.

Falsidade chegou aí e reinou, não?

- E você... não fala seu gosto pra não magoá-los? - perguntei, tentando ver um lado positivo nisso. Tinha que ter, não era possível.

- Não falo pra manter a amizade. - ela disse, com o tom mais desleixado do mundo - E ainda tem quem diz que eu sou duas caras, falsa, essas coisas, só porque digo que gosto pra não magoar ninguém.

- Que horror, né? - eu disse, já começando a mudar toda a minha opinião sobre ela.

- Né? Eu odeio gente falsa, odeio ainda mais aquelas que aparentam ser uma coisa, mas, no fundo, são outra bem diferente? São hipócritas, argh! Nojo.

Foi a gota d'água. Terminei de comer meu almoço na velocidade da luz e já ia me preparando pra dar no pé. Que garota chata! Eu nunca pensei que ela seria assim!

- Aonde você vai? - ela perguntou, curiosa.

- Pra longe de você. - eu disse, com toda a minha coragem - Vou ter que assumir aqui que queria falar com você há meses, tinha olhado seu perfil no Facebook e no Instagram e você dizia curtir Pop e MPB, bancava a rainha da honestidade... agora vem falar que odeia gente que parece uma coisa e na verdade é outra? Se olha no espelho, garota!

Assim que terminei meu discurso, percebi que estavam todos em silêncio e olhando pra mim.

Droga.

Saí correndo do refeitório com a mochila nas costas, pronto para sair dali. Passei pelo portão tão avoado que nem me despedi do tio do portão direito.

Fui andando pela rua em direção à minha casa. Não estava prestando atenção em quase nada, mas não pude deixar de reparar em uma pichação em um muro:

"Tem gente que é mais falsa que nota de três reais e mais vazia que casquinha de sorvete"

Era uma frase engraçada, mas não pude deixar de concordar. Por que ela faz isso? Tudo pra ser "popular" na escola? Tudo pra ganhar atenção? Tudo pra ser alguém que ela não é? Por quê?!

Meu celular vibrou e, desanimado, fui checar o motivo. Ela havia postado uma foto nova, no refeitório, com a legenda "Nem todas as pessoas gostam do que você realmente é". Mesmo tendo sido postada há tão pouco tempo, já tinha comentários:

"Ai, linda, não fica assim. Tem gente que não aceita nosso brilho!"

"Recalcado é horrível. Só esse pedaço de música pra definir: 'que você me adora, não espere eu ir embora pra perceber'"

Revirei os olhos quando vi que ela havia respondido com "Só o MPB pra salvar a gente nessas horas, haha."

E eu, que acreditava que tinha descoberto tudo sobre ela, já tenho até dúvidas de quem ela realmente é. Tantas informações disponíveis para o deleite de qualquer curioso como eu, mas quantas delas eram verdadeiras?

Olhei para o céu com dificuldade devido ao Sol intenso, mas ainda pude respirar fundo e murmurar para mim mesmo:

- Dois meses de stalk perdido, hein?

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