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          Ninguém nunca escreveu um catalogo de sentimentos que possivelmente seriam vivenciados durante a vida de todas as pessoas, isso soa impossível, já que não é uma experiência igual para todos, mas algumas sensações são bem comuns. A dor quando alguém querido se despede, se sentir amado quando recebe um abraço dos pais ou simplesmente as borboletas no estômago quando você avista um menino da sua idade que tem um cabelo bagunçado e isso incrivelmente não importa, porque você está apaixonado por cada imperfeição, não que isso tenha acontecido comigo, até porque onde eu moro não tem muitos garotos bonitos, e o aspecto bagunçado é nojento quando a pessoa em questão se comporta como um porco.

Quando eu estava no ensino fundamental teve uma peça teatral sobre o tema de fazenda, e escolheram justamente os meninos mais gordinhos para interpretar os porcos. Curiosamente eles eram basicamente um menino chamado Bernardo, que era tão gordo que usava as calças de seu pai, e tinha o cabelo perfeitamente alinhado a cabeça, como se alguém estivesse lambido para garantir que nenhuma ponta se soltaria, e eu, que, bem, apresentava os mesmos atributos físicos que o Bernardo, com a diferença de que eu tinha menos caries. A peça foi um fracasso porque um trio de garotos que gostavam de chamar a atenção esqueceram suas falas e a professora teve de ler para que eles repetissem depois, e o que já era chato ficou insuportável.

Minhas falas eram basicamente "precisamos ajudar o patrão com a economia" e "queremos ser livres", como se existisse algum universo onde porcos conversam sobre economia e liberdade – ok, nessa época eu não tinha lido A Revolução do Bichos, nem nada que não tivesse saído dos jornais que meu pai trazia do trabalho. Meu pai é tudo o que se espera de um trabalhador da roça; bigode, chapéu, botas de couro, roupas quadriculadas e rasgadas, capim nos dentes e alguma ferramenta pendurada no cinto, o lado positivo é que na única festa significante por aqui, que é a de São João, ele nem precisa se arrumar tanto. A minha mãe é tradicional nas roupas e penteado, mas ela foi à única da família que concluiu os estudos, e já adulta, porque a escola é bem recente por aqui. Mamãe faz quitutes que atraem todo o tipo de gente pra cá só pelo cheiro, ela oferece educadamente um pedaço do que está fazendo, mas nunca cobra por isso.

A essa altura do campeonato você já deve ter suposto que eu moro no interior, o que é verdade, mas não totalmente, já que eu moro no interior do interior. Numa cidadezinha minúscula do Paraná, chamada Pérola. Existem cidades com nomes piores nesse estado (alô Ponta Grossa e Rolândia). Pelo menos quando eu conto para meus amigos do Omegle o nome da minha cidade, e eles dizem que não conhecem, eu posso usar a tradicional piada de que é a "cidade jóia do Paraná", o que não faz sentido, porque nossa economia é horrível e aqui não tem nenhuma pérola, mas pelo menos a piada fica na cabeça.

Aqui só tem uma escola, e que por isso é frequentada desde os meninos mais ricos da cidade, que geralmente vão de caminhonete com algum empregado de seus pais, e dos que tem menos dinheiro, e por isso tem que pegar um ônibus da prefeitura, que é mais do que pontual, o que exige que os alunos estejam prontos quase uma hora antes da aula. Eu faço parte da cota mais desfavorecida, já que eu moro num lugar onde o ônibus não passa, e eu tenho que andar quase dois quilômetros pra chegar na rota do ônibus. Alguns dias da semana, quando é fim de colheita, meu pai me leva de cavalo até o ponto de ônibus. Quando eu era criança, abria os braços e pressionava a barriga do Corvo para ter estabilidade – Corvo é o nosso velho cavalo, que tem esse nome porque é preto e uma vez estava comendo um animal morto.

Enquanto galopava com meu pai, eu criava histórias na minha imaginação, a que eu mais gostava era a de que eu era um príncipe que estava correndo em direção a um castelo enorme com um monstro dentro, eu precisava derrotar esse monstro e salvar uma princesa. Não, isso não é um plágio de Bela Adormecida, porque nessa época eu nem conhecia esse conto. E a julgar pelo meu peso na época era melhor que o plágio fosse de Shrek, e também pelo fato de que eu nunca beijaria uma garota, era muito tímido para isso, e depois eu descobri que era gay, o que dificultou mais ainda.

Agora nós estamos em dezembro, e as aulas vão até o dia 15, o que significa que eu tenho mais 11 dias de aula, 8 se eu não pegar alguma recuperação, mas já estou considerando que isso acontecerá em biologia e física. A colheita está a todo vapor, mas no último fim de semana meu pai se cortou com uma maquina que retira automaticamente o milho, que sai triturado e serve de comida para animais. Curiosamente essa maquina é tão grande e barulhenta que é usada na linha de frente da do desfile em comemoração ao dia da Independência do Brasil. Uma vez meu pai dirigiu no desfile e eu fui junto sentado numa escadinha, com uma roupa verde super apertada, o que me fez suar até pelo nariz e ficar completamente assado.

Mesmo meu pai estando machucado, ele era hétero top do interior demais pra simplesmente obedecer ao médico e descansar. Ele acordava cedo, me levava até o ponto e voltava às pressas para trabalhar em casa. Quando eu chegava da escola sempre tinha algo novo que ele se orgulhava de mostrar, a parte ruim era que as vezes eu precisava ajudar, aí eu questionava se era realmente necessário fazer aquilo e ele sempre respondia bravo:

- Se tivesse alguém pra me ajudar seria mais rápido.

Só que era mentira, porque o trabalho nunca acaba quando você não é uma pessoa que entende que existem limites. E também porque meus pais só tiveram um filho – eu, no caso – o que significa que a mão de obra infantil ficou toda pra mim. Mas eu não reclamo, já que sempre corro ajudar minha mãe na cozinha antes que meu pai chame, o que faz com que meu pai desista e pague pela ajuda de um vizinho do que a do seu filho. Eu amo minha mãe por me proteger, as vezes ela coloca louças já limpas para eu lavar novamente e fingir que tenho o que fazer, ponto positivo para o amor que eu tenho pela minha mãe, e ponto negativo porque é um desperdício que só.

O vizinho que ajudava meu pai nunca foi a escola, ele era totalmente bruto no seu jeito de ser, mas com o tempo eu descobri que ele era adorável porque escutava minhas histórias inventadas e sempre ria junto. Não podíamos brincar, porque ou ele estava trabalhando para os meus pais ou para os pais dele, mas às vezes saíamos roubar frutas na fazenda do Dr. Mauro e era o momento em que eu sentia de verdade o que era ser livre. Na maior parte do tempo eu sentia que por não ter ido para a escola ele era tão inocente, e isso me fazia querer não ter ido também.

Mas assim que o relógio apita – brincadeira, o correto é assim que o galo canta – o meu pai levanta e se dedica a missão quase impossível de me acordar pra ir a escola. E ainda me faz agradecer por ele estar machucado, e por isso me acordar mais tarde pra não precisar andar. Eu teria gratidão, mas são cinco da manhã, o sol nem nasceu e nesse dia em especifico eu dormi mal, já que meus pensamentos estavam focados em "meu deus, faltam poucos dias pra acabar de vez o ensino médio e eu preciso decidir em 3 semanas o meu futuro". Esse e outros pensamentos ecoavam na minha cabeça, fiquei um pouco ansioso, mas quando dei por mim já estava no ponto de ônibus me despedindo do meu pai. Eu passei um caminho de 2km galopando e não lembro de nada, nem mesmo consigo me lembrar quando foi que eu deixei de criar histórias fantasiosas pra pensar no futuro.

Socorro! Me apaixonei pelo "estagiário" (título provisório)Onde histórias criam vida. Descubra agora