O DIABO DE TERNO NA TERRA DE NINGUÉM

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Preciso de apresentações? Imagino que não, pois o mundo ocidental está recheado de lendas sobre mim. "Lúcifer", "O Inimigo das Almas", "Senhor das Sombras", nomes recitados por milênios pelas bocas murchas de velhinhas supersticiosas. Mas, como estou no Brasil atualmente, prefiro me valer dos títulos regionais, "tinhoso", "cão", "capiroto". Irônico que seja, combinam muito mais comigo, afinal não há o tom sisudo e imperial levado a cabo pelos europeus. Os europeus só acertaram em uma coisa: na associação da minha figura ao sátiro, o pervertido dos bosques.

No início, confesso, interessava-me mais por espalhar a perversidade entre os homens. Só que os meus filhos cuidaram tão bem do processo, que não me vejo mais impelido a qualquer trabalho. Hoje em dia, vivo em férias! E é isso que quero relatar a vós, um episódio dessas férias que já duram milênios. Naturalmente, o cenário é o Brasil, região Sudeste, mais especificamente, em São Paulo, afinal eu já tinha feito um tour pelo resto do país nos últimos anos.

Era sábado e eu caminhava pela Avenida Paulista, meia-noite. Quem conhece esse lugar sabe que a noite é uma criança e há uma multidão de pessoas nas calçadas em qualquer horário. Parte disso é o que me interessa nesse lugar. Não pela multidão, afinal eu me deparo com multidões muito maiores ao visitar Pequim. O que me interessa em São Paulo é a variação, variação de rostos, de estilos, de cheiros. É um paraíso multicultural onde as identidades se torcem e se distorcem! Todos existem, mas ao mesmo tempo não existem. Quando se é tão velho quanto eu, não há visão melhor, visão tão variada no mundo inteiro. Nova York? Não é uma boa comparação, pois Nova York é "muito certinha", cheia de moralistazinhos. A não ser em filmes hollywoodianos, não há um verdadeiro submundo por lá. A sujeira de Nova York fede à vista de todos, da 5ª Avenida a Wall Street. Em São Paulo, o crime é um cão sem coleira; bem menos da metade dos homicídios no estado são resolvidos, só os que passam na "tevê", na maioria dos casos. E se num só estado é um cão sem coleira, no país como um todo é um leviatã com mil e um cadáveres entre os dentes. Mas São Paulo tem um verniz de civilização que lhe é especial! Prédios grandes, gente bem arrumada e cheirosa, uma ferocidade bem escondida. Entra a esquerda, sai a direita, e eu aposto nas duas com as mesmas fichas. Afinal é isso que eu sou, um selvagem de terno!

Eu estava bebendo com uns amigos num barzinho escondido, o Boca do Inferno. No papel, era um bar; na realidade, era um prostíbulo, como tantos que existem lá nesse maravilhoso país da lei-fantasia. No meu colo, havia uma "acompanhante" pedindo a mim que pagasse umas bebidas, à minha esquerda estava Pedroso, um líder sindicalista, à direita dele estava Romero, um empresário de construções. Por fim, à minha frente, estava Assis, o Papa-morto, dono da maior funerária do país.

— É, neste ano as coisas estão boas para mim — disse Assis, coçando sua careca e por vezes tossindo. Suas olheiras revelavam muitas noites mal dormidas. — Morte atrás de morte. Está saindo pior do que a guerra na Síria, rapaz!

Ele suava como um porco. Pobrezinho, tanto trabalho!

— E não era para estar comemorando? — questionou Pedroso, sorrindo de leste a oeste como uma raposa. — Vixe, as coisas estão fracas pra mim este ano, tu nem sabe. Pouco dinheiro rolando na mesa.

— Se as coisas continuarem tão lucrativas assim — interveio Romero, apagando um cigarro na mesa —, teremos que abrir uma bolsa só para mortos.

— MERSDAQ é um bom nome! — zombou Pedroso como se estivesse fazendo uma referência genial.

Sim, ele era um grande fã de A Praça é Nossa.

Logo todos me encararam, ansiosos pela minha opinião sobre o assunto. Coloquei duas notas de cem no decote da moça que me acariciava e pedi que se afastasse por alguns minutos.

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⏰ Last updated: Jun 05, 2017 ⏰

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