Ella

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Ella havia retornado do seu exílio no hospital psiquiátrico mais famoso da região há mais de um ano agora e quase conseguira acertar a sua vida. Tinha uma rotina, ainda que solitária, mas já era algo. Se considerava uma boa pessoa e, vez ou outra, ponderava se mereceu mesmo todas as coisas ruins que lhe aconteceram, mas aquela era a sua vida e teria que encará-la aceitando as consequências de suas ações. Eram essas as recomendações médicas.

Morava sozinha num pequeno apartamento num bairro nobre da cidade. O imóvel tinha sido herdade dos seus avós, valia uma boa grana e sempre agradecia pelo presente que lhe fora dado para "caso ela decidisse mudar de cidade ou quem sabe de vida". Essa era as palavras do avô em sua carta testamento. Algo que nunca aconteceu já que ela continuava ali. 

Chegava em casa sempre no início da noite, nunca saía com os colegas de trabalho para os encontros pós-trabalho. Mesmo após 8 meses trabalhando naquele lugar, não conseguia interagir com as pessoas, não sabia como abordá-las ou fazer parte da equipe, então simplesmente desistiu e aceitou ser só mais uma. Voltava sozinha para casa todos os dias, preferivelmente pelos mesmos caminhos. Rotina era importante.

Cozinhava para si. Era boa naquilo. Apreciava bons vinhos e investia bastante dinheiro nisso. Depois de um tempo imersa em uma solidão profunda, daquelas que lhe roubam o sossego e qualquer viés de esperança, começou a conversar consigo mesma. Precisava ouvir a voz de alguém, ainda que fosse a sua. Era o que lhe restava. Ensaiava diálogos na sua cabeça que funcionam perfeitamente, imaginava pessoas no outro polo da conversa, dizendo exatamente o que ela queria ouvir, fazendo exatamente o que ela queria que fizessem. Perfeito! Tudo ficou mais fácil. 

Durante meses e mais meses ela ansiava pelo momento de ficar completamente sozinha para poder conversar consigo mesma, mas naquela manhã de domingo, tudo mudou.

Ella ainda não havia acordado completamente quando fitou uma figura estranha parada há alguns metros de onde estava deitada, seus olhos ainda entreabertos não conseguiram reconhecer a silhueta imediatamente, talvez ela não quisesse olhar, talvez fosse melhor puxar a coberta novamente ignorando o que quer que fosse aquele vulto que parecia que a olhava incessantemente. Talvez fosse a escuridão enganando os seus olhos.

"Antes um vulto que uma pessoa", pensou.

Quando o primeiro resquício de coragem apareceu, Ella se levantou do sofá empenhada em descobrir o que era aquela coisa. Estava sozinha, não sabia sequer onde havia deixado o celular para pedir socorro - talvez não tivesse a quem recorrer,  afinal. Então decidiu pegar o objeto mais pesado que estava ao seu alcance e andar cuidadosamente, quase contando os passos, até o interruptor de luz mais próximo.

Antes mesmo que as luzes pudessem se acender completamente, ela acertou o vaso na cabeça daquela coisa, que continuou impassível, seus olhos estavam abertos, mas não se mexiam, sequer se abalaram ao sair da escuridão para a claridade, não havia vida ali e, apesar da forma corporal definida de uma mulher, o rosto era indecifrável, como alguém que acabara de sair de uma cirurgia, completamente inchado e sem feições.

Ao observar aquela coisa imóvel e sem rosto, Ella teve que se apoiar rapidamente na mesa ao lado para não desmaiar. Depois de um tempo, começou a reparar que o corpo a sua frente era exatamente igual ao seu. Tinha estatura mediana, cabelos pretos cortados na altura do ombro como o seu, mãos do tamanho da sua, o defeito em um dos dedos do pé esquerdo também estava ali.

Teve certeza que dessa vez desmaiaria. Não podia acreditar naquilo que estava a sua frente. Estava ali uma versão de seu corpo, ainda que sem um rosto definido e que mais parecia uma obra de algum artista plástico sem talento. Se sentindo um pouco tonta, contornou o corpo buscando outras semelhanças. Várias perguntas surgiram na sua mente, todas sem respostas. Não sabia o que fazer.

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⏰ Última atualização: Nov 05, 2020 ⏰

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