1981

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Na calada da noite, durante a escuridão gélida, um estrondo eclodiu. Uma órbita em tom azulado tentava ganhar foco. Não estava sozinha naquele momento. Diversos olhares foram arrancados de seus sonhos e sonos agitados quase instantaneamente, como uma orquestra em sincronia. A música que tocava era a do caos, do cheiro putrefato, das lamúrias e das lágrimas salgadas.

Aqueles olhos azuis guiaram um corpo pequeno e rechonchudo até o cômodo ao lado da sua morada. Fecharam-se em completo desespero quando observaram o vazio já esperado. O vazio de um corpo e não de objetos, afinal a cama estava lá. O criado-mudo velho com um de seus pés quebrados e a tampa descascada permanecia no mesmo canto, próximo à minúscula janela encoberta por uma cortina de tecido escura, responsável por manter aquele ambiente na penumbra. Sem esquecer a cômoda que acomodava as poucas roupas ali existentes.

A dona do olhar soube. Aquela incerteza tornou-se uma verdade que lhe rasgava de dentro para fora. Tentou pensar que talvez estivesse longe, porém a batida da porta lateral lhe indicou o contrário. Como sabia que se tratava da porta lateral mesmo estando no andar superior? Pelo rangido do metal sobre o batente e também pela rapidez que os passos alcançaram as escadas. Aquele era o caminho mais curto.

Ela ainda estava dentro do quarto vazio de alma quando o seu dono a invadiu, empurrando-a contra a parede descascada. Sentiu sua carne batendo contra o concreto duro, ferindo mais do que apenas o seu corpo físico.

A sombra se movia com rapidez procurando algo que jamais seria localizado — não com todo aquele desespero latente. Foi quando outro barulho se fez mais alto.

O medo havia arrombado a porta principal e seus tentáculos se embrenhavam pelas fendas daquele sobrado malcuidado — como todos os outros sobrados daquela rua, daquele bairro, daquele país. Não demorou e encontrou o que buscava.

Gritos podiam ser ouvidos a léguas de distância. Havia também súplicas de uma mãe para um filho que jamais abraçaria de novo. A Mão de Ferro o levou e agora teria de encarar as consequências de seus atos.



Era o ano de 1981. A Irlanda do Norte seguia em sua guerra civil entre católicos e protestantes e, acima de tudo, uma luta política contra a primeira-ministra Margareth Thatcher, sempre firme em suas decisões. Não eram presos políticos, eram criminosos e seriam tratados como tal, independente de ideologias ou mesmo direitos humanos.

Protestos dentro das prisões ficavam cada vez mais violentos e opressivos. E então aconteceu. Bobby Sands, um dos líderes do IRA, parou de comer e só voltaria quando a Dama de Ferro cedesse.

Sessenta e seis dias. O ferro não se curvou. A vida deixou um corpo esquálido, porém não levou com ela a importância daquele ato desesperado. Não mudaria nem mesmo sendo eleito a uma cadeira vacante no Parlamento britânico. Em represália, o Parlamento aprovou uma legislação que impossibilitava condenados de serem eleitos. Foi o que bastou para muitos seguirem o seu exemplo. Mães choravam pelas vidas de seus filhos e filhas.

O rapaz seguia confuso quanto à sua incursão no protesto. Não queria morrer. Pelo menos não daquela forma. Preferia que fosse através de um tiro e não definhando de fome em uma cama hospitalar. Na última vez que viu seu corajoso líder pela fresta da porta de metal de sua cela, uma mistura de asco e medo lhe tomou os ossos.

Ossos. Era isso que ele pôde ver pela fenda. Um esqueleto que andava e gemia. Não era assim que queria terminar. Não foi para isso que se juntou à causa. Ele queria que as crianças pudessem ir às escolas sem ser hostilizadas. Ele queria um lugar justo para que sua mãe pudesse ir sem medo comprar o alimento de sua família. Queria liberdade e igualdade para os seus iguais.

Sentado num canto imundo de sua cela, com seus excrementos decorando as paredes, envolto apenas em um cobertor, recordava o olhar de súplica que sua mãe lançava aos guardas que invadiram o seu lar e lhe arrancaram do acolhimento de seus braços. Aqueles mesmo braços que lhe imploraram para não se envolver, mas como ficar impassível diante do que acontecia desde muito antes de nascer? Passou a vida abraçado pelo medo, pelo ódio. Não podia mais ficar indiferente, tinha que lutar, mesmo que isso custasse a sua vida. Custaram vidas demais, na maioria inocentes e ele também sabia disso.

Antes de ser colocado como um porco morto no carro, pôde ver a mãe sendo agredida. Mesmo na escuridão enxergou o sangue vermelho lhe escorrendo pela face. Aquilo lhe partia ao meio e por isso sabia que o que fez era o correto. Quantas pessoas como a sua mãe ainda suportariam tamanho horror? Porém o tempo na prisão já começava a nublar esses pensamentos.

O medo ficava mais intenso. Se negasse seguir com seu povo em qualquer decisão, seria considerado um traidor. A morte já lhe era certa, de toda forma. Cabia a ele apenas decidir como morreria. Desejava ter a coragem de Sands e seguir com a greve de fome até o final. O correto era acreditar que a Dama de Ferro cederia e vidas seriam poupadas, porém sabia dentro de sua alma que ela não faria isso. Pessimismo de sua parte? Talvez. Contava mais com o realismo. E mantinha esses pensamentos enclausurados em sua mente. Medo. Muito medo.

Dias. Semanas. Meses. Um a um, aqueles que aderiram à greve de fome foram morrendo e nada era feito. A certeza em seu peito só aumentava. Seus pensamentos iam até a sua mãe e no que ela lhe diria. Certamente lhe daria uma surra para logo em seguida acomodá-lo em seus braços e afagar seus cabelos.

Cabelos. Costumava exibir uma vasta cabeleira loira que chegava próxima aos ombros. Não era um rapaz bonito. Magro e alto demais. As espinhas haviam deixado seu rosto todo marcado. Havia também cicatrizes. Muitas brigas na rua. Sua mãe lhe beliscava no braço toda vez que lhe fazia curativos e então lhe preparava uma sopa.

Sopa. Nunca gostou, comia porque era o alimento ofertado por ela em noites frias ou de reprimendas. Agora sentia falta dela. Daquele caldo ralo com algumas batatas espalhadas. A fome intensa não fazia com que ele entendesse que a falta da sopa não era do alimento e sim do amor incondicional de mãe. Amor que ela teve que se agarrar para não condenar o filho em seu peito quando soube que a bomba feita por ele levou filhos e filhas de outras mães. Onde errou? Onde o perdeu? A resposta estava em três letras: IRA.

Na rádio, todos os dias atualizavam a situação dos presos na prisão de Maze, a morada dos criminosos na Irlanda do Norte. E todos os dias ela esperava escutar o nome do seu filho ser dito. O alívio seguia até o dia seguinte e então a angústia retornava.

Os protestos seguiam do lado de fora daqueles muros também. A mãe estava no meio, ao lado de tantas mães e também da Igreja Católica. Aquelas mortes estavam deixando o governo britânico sem saída. Cinco meses e nove presos tiveram que perder suas vidas antes da Mulher de Ferro ceder. O rapaz estava salvo.

Veria sua mãe algumas semanas depois de lhe ter sido ofertado o direito de usar roupas civis. Os guardas não lhe espancavam mais. Todavia, quando a lâmina atravessou o seu baço, a ferida jorrando o sangue vermelho, manchando todo aquele pátio e sua vida esvaindo em sussurros, não entendeu.

Era para estar seguro. Não tinha lugar seguro nesse mundo de lamúrias e sofrimento. Somente quando a vida saía de seu corpo entendeu. Morreu como um criminoso comum e não com status de preso político, afinal isso Margaret Thatcher nunca concederia.


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