Capítulo 02

2.9K 392 199
                                    

Eu ajudei o papai Dylan a servir o jantar do Gabe, organizando os pratos sobre a bandeja e enfeitando com ervas e flores comestíveis. Quando terminamos, os potes de comida requentada pareciam cardápio de um restaurante gourmet.

Papai Dylan afagou a minha cabeça e elogiou meu talento. Ele adorava mimar o papai Gabe de todas as formas possíveis, e eu adorava auxiliar no que pudesse. Eram raras as ocasiões em que eu conseguia me sentir útil.

Quando papai Dylan levou a bandeja para a suíte do casal, pedi autorização para me retirar e retornei à sala.

Haviam várias mansões luxuosas na nossa vizinhança, mas a nossa se destacava. Dois andares com diversos quartos, e uma sala ampla no térreo, com uma cozinha integrada tão bonita quanto a dos filmes, e muitos móveis de grife.

Papai Gabe gerenciava a filial de uma loja de surfe, mas o luxo que nos cercava parecia ser coisa do papai Dylan. Ele não resistia a encher Gabe de presentes. Não havia nada que os tesouros de navios naufragados não pudessem comprar. Papai Gabe tentava protestar, mas era óbvio o quanto adorava receber gracejos.

Enfim, aquela casa não foi comprada pelo tamanho, mas pela localização. Aos fundos sa sala, portas de correr transparentes revelavam uma ampla faixa de areia branca e o mar cor de esmeralda, estourando suas ondas numa cascata de espuma uma após a outra, sob o pontilhado prateado das estrelas. Duas muradas de rochedos bloqueavam o acesso pelas laterais da casa, expandindo-se por vários metros mar adentro e tornando aquele trecho a nossa pequena praia particular.

Considerando-se o segredo da nossa família, privacidade era mais do que importante, ainda mais em uma metrópole movimentada como Waikiki.

Eu abri os painéis e toquei meus pés descalços na areia fofa, fazendo pegadas em direção ao mar. O vento salgado e fresco ondulava minhas franjas longas, flamulava a canga havaiana que eu vestia, e acariciava meu rosto, fazendo meu coração apertar. Por algum motivo, as dor nas palavras do Maikon não me escapava da mente.

Quando cheguei à beira do mar olhei para o chão, e assisti meus calcanhares afundarem na areia molhada, conforme as ondas iam e vinham... iam e vinham. Logo uma onda mais forte imergiu meus pés, dissolvendo minhas pegadas e minha forma humana.

No tempo de um piscar de olhos, escamas azuis brotaram ao longo das minhas pernas, que se fundiram uma na outra. Meus pés se alargaram numa longa barbatana azul-safira, e quando a última escama pontilhou minha metade de baixo não pude mais sustentar o peso do corpo. Eu sentei-me lentamente, até a areia molhada inundar minha canga.

Eu me livrei do tecido azul e observei meu corpo de tritão. Maikon adorava a forma como minhas escamas reflletiam a luz do luar. Para ele, eram como milhares de diamantes. Mas diamantes eram preciosos e não havia nada de precioso na minha espécie. Não para os humanos, certamente.

A carícia das ondas me fez fechar os olhos, pedindo minha atenção às mensagens do oceano. Mesmo dormente meu chamado me ensinava, me conduzia, e ensinava os caminhos da nossa espécie. O mar conectava a alma de todos os tritões e sereias, e através dele nós aprendíamos quem éramos, e quem deveríamos ser.

Seu momento irá chegar, pequeno.

A missão será cumprida.

Aprenda o destino dos seus.

As vozes vieram todas de uma vez. Calmas e agitadas, sábias e tolas, uma mistura infinita de pensamentos do passado e do presente. Milhares de tritões vivos e finados conversando comigo, pois o oceano nos tornava um só.

Doía. Doía muito.

Eu me forcei a abrir os olhos e empurrei as vozes para longe, até mergulhar no silêncio que eu tanto precisava. Meu coração latejava cada vez mais. A última coisa que eu queria era ouvir a verdade.

Ondas em Rebentação (AMOSTRA)Onde histórias criam vida. Descubra agora