Capítulo Único

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O vento sobrou uma mecha de seus cabelos dourados em meu rosto, despertando-me de meus devaneios. No céu, as estrelas já iluminavam aquela imensidão escura sob nós dois. Devagar virei meu rosto para encarar o seu. Ela estava serena e totalmente mergulhada em seu imenso mar de pensamentos com aquele sorrisinho bobo que só ela tinha.

- Por que me olhas tanto? - indagou a pequena - Achas que não sei que estás a me observar?

Com um riso tímido voltei meus olhos para o céu.

- Por que sempre carregas esse guarda-chuva? - perguntei - Não parece que vai chover.

Não pude deixar de notar que ela voltou a sorrir daquela forma, como se esperasse há muito tempo por essa pergunta.

- Eu gosto da chuva.

Espiei seu rosto por um instante. Olhos fechados, sorriso bobo, bochechas rosadas. A brisa gelada jogando suas madeixas louras pra lá e pra cá, fazendo uma bagunça naqueles cachos pacientemente moldados.

- Se gostasse tanto da chuva, não carregarias um guarda-chuva. Você não aproveita nada dela.

- Por que você tem um pássaro?

- Hum... - pensei por um instante - Porque gosto de pássaros.

- Se gostasse tanto de pássaros, não prenderias um numa gaiola. Ele não aproveita nada dentro dela.

Voltei a fitá-la ainda sem entender seu raciocínio. Talvez ela não quisesse ser entendida, talvez só quisesse ser aceita do seu jeito. Com ou sem aquele guarda-chuva vermelho sempre enroscado em seu braço.

- A gaiola tem para o seu pássaro a mesma importância que o guarda-chuva tem pra mim. - murmurou tão baixo que suas palavras lutaram contra o vento pra chegarem até mim.

- Ambos protegem?

- Não, ambos tem o poder de nos libertar.

Franzi o cenho deixando-a perceber a confusão que fez em minha cabeça.

- A chuva me trás a sensação de liberdade. Toda vez que chove, eu me sinto livre de certo modo, por isso gosto tanto da chuva. - ela sorriu - Seu pássaro gosta de voar. Voar faz dele livre, assim como a chuva me faz livre. O guarda-chuva e a gaiola são como uma barreira para nossa liberdade.

- Mas ninguém te impede de tocar a chuva e ser livre.

- Você sabe quando os pássaros começam a voar?

Voltei a olhar seu rosto. Agora aqueles lindos olhos azuis mergulhavam na imensidão do céu estrelado. Ela estava ali, mas não estava ao mesmo tempo.

- Quando eles aprendem, certo? - falei.

- Quase.

Fez-se silêncio.

- Eles voam quando se sentem prontos pra voar. Quando eles sabem que ao voar, vão ser livres para sempre e nunca mais voltar.

- Então não tocas a chuva porque não se sente pronta pra ser livre?

Ouvi seus lábios se movendo para dizer algo mas ela apenas suspirou, deixando as palavras morrerem antes mesmo de chegarem em sua boca.

- Quando tocares a chuva, não voltarei a vê-la de novo? - perguntei mesmo sabendo a resposta.

- Não.

- E quando estarás pronta para tocar a chuva?

- Serás o primeiro a saber quando eu estiver.

Agora aquele lindo sorriso bobo era direcionado a mim. Ela sabia que significava muito pra mim, e acho que eu também significava muito pra ela. Mas ainda sim, a liberdade dela significava mais. Ela era tudo o que eu queria, mas tê-la seria aprisioná-la, exatamente como um pássaro na gaiola. Eu precisava deixá-la voar.

- Você gosta das estrelas, não gosta? - perguntou ela, ainda a me olhar.

- Gosto.

- O que vê nelas?

- Um pouco de tudo. Vejo objetos, vejo animais, até mesmo pessoas. Também vejo caminhos.

- Caminhos?

- Sim. - dei um risinho torto - Acredito que cada estrela é um caminho que leva a cada pessoa. Meio idiota, mas acredito.

Ela sorriu. Ah, mas que sorriso bobo.

- Eu vou ver você amanhã? - perguntei.

- Se você não me ver, procure-me nas estrelas.

- E se eu não encontrar você?

- Você não disse que cada estrela é um caminho que leva a cada pessoa? Você vai me encontrar.

Ela se levantou batendo as mãos em seu vestido amarelo. Pouco a pouco retirou toda grama grudada em seu corpo esguio. Já de pé parei ao seu lado e lhe entreguei seu inseparável e tão amado guarda-chuva vermelho. Ela agradeceu-me com um rápido beijo na bochecha e o pendurou em seu braço esquerdo. Observei-a desaparecer pela rua para então subir em minha bicicleta e pedalar para casa, pensando em quão sortudo eu era por tê-la conhecido.

•••

No dia seguinte, acordei com a chuva batendo em minha janela. Do lado de fora, bem em minha porta, foi deixado encostado um guarda-chuva vermelho. Sentei-me na varanda e olhei a chuva cair.

Cada gota que caía era pura e fria, assim como o coração da garota que eu mais amei.

Cada gota que caía era única e livre, assim como a garota que eu mais amei.

O único conforto que me restou é saber que ainda posso encontrar um caminho até ela através dar estrelas, todas as noites.

A Menina do Guarda-Chuva VermelhoOnde histórias criam vida. Descubra agora