Expresso ou Uísque

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***Conto publicado originalmente na antologia "Sabor da Paixão" em 2016



Para todos que acreditaram em mim
Meus amigos, minha fortaleza 

Expresso ou Uísque

Não posso nem ao menos ir ao mercado sem ouvir quanto eu sou louca. E sempre quando dizem isso eu tenho vontade de quebrar os dentes da pessoa. Conto até 1798 e respiro fundo. Lanço meu sorriso amarelo nervoso, máscara para minha real intenção: agressão. Não precisa ficar com essa cara, eu sou um anjo, é sério! É que na cabeça desse povo dispensar dois relacionamentos num curto período de tempo é um tipo de loucura. Ou ter dois relacionamentos ao mesmo tempo...

É sério! Eu tentei, não deu certo, bola pra frente, oras! Eu acho que as meninas deveriam ao menos tomar suas próprias decisões, sabe? E eu tomo as minhas, doa a quem doer. O problema de cidade pequena é que praticamente todo mundo conhece todo mundo e justamente esses dois homens resolveram, por mistério oculto e pura coincidência da natureza e do universo que gosta de me chutar o traseiro, morar na mesma cidade, no mesmo bairro. Eu nem de longe tinha a intenção de ter qualquer tipo de relacionamento com nenhum desses dois. Historinhas de dois caras brigando por uma menina já deu. Eu fujo disso como o diabo foge da cruz. E tem outra coisa, eu vim de uma criação muito complicada e meus empregos são bem peculiares, do tipo que me pagam para bater em alguém. Geralmente é para cobrar uma dívida contraída de jogo. Trabalhei pra muitos mafiosos, e ainda faço isso de vez em quando. Não que eu fosse uma, mas eu tenho experiência em coagir, descobri nisso um dom. Não que meus pais se orgulhem disso, eles nem sabem, bate na madeira. Mas, enfim, não sou do tipo que tem muitos encontros, a não ser

que sejam encontros da máfia, onde me entregam um envelope com o nome e endereço da pessoa que precisa apanhar.

Calma, não se assuste, eu lido com eles há muito tempo, eu trabalho com gente das quebradas, mas eu mesma sou uma ternura, o amor e vaidade em carne e osso. E mesmo assim, mesmo tentando evitar relacionamentos, eles simplesmente aconteceram e bagunçaram totalmente o meu mundo que já era um caos perfeito e artístico.

Minhas relações amorosas são como drinks e misturas líquidas que permeiam toda a minha vida. Cada homem que cruzou o meu caminho eu o defino como um líquido com suas características e reações. Eu sempre bebo dessa fonte, mas nem sempre eles são docinhos e agradáveis de bebericar. Se você costuma sair com eles, sabe do que eu tô falando. Sabe o gosto de cerveja amarga e definitivamente sem graça, e que quando você toma aos montes e rodeado de colegas chega uma hora que começa a odiar o amargor, mas gosta da balada? Os homens são assim para mim. Porém, existem aqueles que conseguem se redefinir numa bebida um tanto mais sofisticada. Nem sempre o final é bom, mas não deixa de ter sua singularidade. Então vamos aos problemas...

Pietro, por exemplo, o italiano da família Bonesso que conheci quando trabalhei em São Paulo, faz o estilo café expresso que me deixou ligada, com vontades, mas seu temperamento adstringente e suas ações ácidas arrebentaram o meu estômago.

E no final das contas — olha só — acabei ficando com uma baita gastrite. Mas confesso que teve momentos belos. O terno, o cabelo arredio, a barba perfeita e o cheiro de colônia de uva intensa não eram páreos para aqueles olhos castanhos claros que pareciam mel contra o sol. Ele apareceu no bairro e deixou as novinhas todas desesperadas. E olha que faziam fila para ele. De repente, o bairro todo o queria. E sabe com quem ele encarnou?

Adivinha? Os dentes perfeitos, o cheiro da colônia e a imensidão daqueles olhos me impediram de declinar o jantar. E pela primeira vez eu estava dançando de rosto colado com alguém que entendia de café e carros numa sinfonia organizada de dar gosto. Eu odeio ser organizada, mas gosto de homens organizados. Isso demonstra uma pequena parte de mim que faz parte do turbilhão que é minha vida.

Ele era um desses casos onde o meu caos fazia sentido na malícia. Ele nem se impressionou quando eu contei minha história de amor sobre carros e o café. Muitos se assustam por eu curtir carros. É que geralmente eu sei muito mais de carros do que eles. Isso deixa vários desses marmanjos me odiando. Menos

Pietro, que se divertia me ouvindo falar. Ele dançava comigo e a cada frase minha sobre modelos de carros e empresas automobilísticas seus lábios reconstruíam uma linha horizontal tão linda que transmutava em um arco ao contrário, recortando um sorriso maravilhoso e com um olhar que podia, assim dizia Adoniram Barbosa, matar mais que atropelamento de automóver, matar mais do que bala de revórver. Perdi o fôlego.

Agora vamos falar sobre Moisés. Esse homem foi um problema. Seus olhos de cigano oblíquo e dissimulado dão um tapa na cara do Machado. Que homem lindo, caraca! Ele é um cara que possui o mesmo turbilhão de caos que minha vida é. Ele é de família cigana de verdade, saiu de Santos e veio pra São Paulo assim que seus pais morreram num acidente. Ele não quis viver como um nômade cigano, dizia ele que não queria essa vida. Afinal, depois que seus pais morreram muita coisa perdeu sentido para ele. Moisés acabou fugindo da tia que tinha sua tutela e veio parar dentro da minha casa. Sim, por mais louco que isso seja. E como eu sei? Então.... Nos tornamos colegas de quarto durante a faculdade. Eu era universitária enquanto o cigano era um errante que veio pra São Paulo tentar a vida. Eu uni o útil ao agradável.

Ele tem um bom papo, é lindo e cheira a eucalipto e carvalho. Me convenceu. Não aconselho fazer isso. Não façam isso! Moisés é como um uísque de baixa qualidade e seu gosto acre de carvalho velho junto ao álcool proporciona bons momentos de alegria e privação da timidez.

Como eu gostava de pirar nos bares com aquele homem...

Ele sabe se divertir. Não me julga quando bebo ou quando fumo.

Para ele tudo faz parte da minha própria insanidade. Com aquele uísque 32 anos tive momentos entre paredes proibidos para menores. Eu me sentia inebriante. Então bate a tristeza e o barraco se forma com o alto índice das doses. No final do nosso relacionamento, Moisés tinha sabor de entojo que me embrulhava o estômago num dia seguinte de ressaca e desgosto de viver. Mas fazer o quê? O problema em que me encontro é que esse disgramado de cabelos desgrenhados comprou a casa ao lado da minha e agora somos vizinhos. Eu prometi nunca mais dar bola para esse homem... Mas vou te contar... Maldito resquício de Capitu.

Nunca odiei tanto Machado.

No final das contas eu fico com a minha boa e velha Coca--Cola, que facilmente está associada ao meu ego. Gelada, intensa e repleta de gás, uma combinação poderosa com a cafeína e o açúcar que viciam muito mais que qualquer droga, praticamente letal. Só Deus sabe como sou viciada em mim mesma. No final das contas, meu amor-próprio é intensamente proporcional e reverso ao amor que eu sinto pelos homens. Não que eu os odeie, lógico, mas às vezes eu me sinto melhor comigo mesma do que com eles.

***

Ah, espera, não vai embora ainda! Eu tenho um pequeno problema para resolver. Mas talvez você possa me ajudar. Bem,

muita coisa aconteceu depois que aqueles homens apareceram no bairro. Eu me encontrei com os dois e me deitei com os dois, é um pequeno segredinho que eu não posso esconder de você. Com Moisés foi remember e com Pietro foi novidade. Mas agora eles estão na frente da minha casa e depois de socos e muito barraco me colocaram numa berlinda. Mesmo eu não querendo nenhum dos dois, eles me obrigaram a escolher, veja só! Eu ia mandar os dois à merda e voltar para minha Coca-Cola. Mas aí eu pensei, se for pra dar uns amassos, que mal tem? Então eu tenho uma proposta: Que tal você escolher um e eu fico com o outro? A responsabilidade é toda sua. Vamos lá, não faça essa cara! Sei que você curtiu pelo menos um. E aí, qual vai escolher? O Italiano ou o Cigano?

Ah, perdão! Se você for homem, não precisa me olhar com essa cara e falar coisas sobre minha mãe, eu fico com os dois, não tem problema. Eu me viro. Agora, se você quiser dividir também eu juro que não vou ficar chateada. Vai, lá! Uni, du, ni, tê...

E o escolhido foi?

Expresso ou Uísque + Vinho que é bom, nada!Onde histórias criam vida. Descubra agora