mosaico perdido

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Encarando o horizonte, permito que a sensação de paz me invada. Logo, sou uma corrente de ar carregando sopros leves que talvez façam do meu corpo um lugar melhor a se habitar; levanto e cambaleio até encontrar equilíbrio, dançando de um lado para o outro, chacoalhando, e me sinto feliz como uma pintura no breu. O breu ferrenho escalando o infinito.

Enquanto palavras dançam, traçando um caminho descomplexado rumo ao coração, costurando verdades inquietantes, todas aquelas que perpassam o eu do outro lado. As portas abrindo, um mar inteiro invadindo o cubículo do quarto, silencioso, pertences afanosos de um Rei materialista e, enfim, paredes cheias de rosas espinhentas o suficiente para perfurar a respiração e sugar a essência para dentro de um sonho; mesmo com tão pouco para suportar, o caminho continua, avistando um veleiro, o viajante parado, de braços abertos, esperando um elogio sincero, mas, mesmo que nunca o venha, a jornada segue; um pedaço de um coração solitário que diz maldades para seus companheiros com o intuito de se sentir melhor, até mesmo mais apresentável e cobiçado. E, então, este coração reina. Uníssono. Contando uma história inimaginável e totalmente cruel sobre esse reinado, destrutível e sufocante. Certamente, as rosas imprevisíveis diante ao caos. No final, não somente um mar ardiloso de pensamentos supérfluos, como também a junção fatal de todos os oceanos; costura-se a colcha pesada e sufocante no tangível restante: um bem-me-quer de guerras sangrentas. De qualquer forma, a vergonha da jornada, o mapa de ponta cabeça. A partir deste momento, trajar vagarosamente entre caminhos tão complicados e apertados pareceu aceitável. O desejoso despertar, olhos bem abertos, supondo o inalcançável. Nunca. Assim como bem-me-quer, um viajante crente do mundo nas mãos. Não tão belo. Mas talvez usar adjetivos tão alegres e superficiais quanto ele faça de mim a verdadeira estúpida.

Pouco tempo depois, quando percebo a falta melódica, viro de costas e vejo um reinado poderoso em ruínas, grandes barreiras florais. Eu sabia dessa angústia geracional de quem carrega um mapa nas costas, e talvez por isso nunca aprendera a lição.

Mesmo que não estivesse com uma coroa cheia de joias e mimos na cabeça, me aproximei silenciosamente da estrutura toda ferida. E penso se sua ruína veio do nunca dito.

Restos de parede e pilastras bem esculpidas rodeavam com toda a morbidez o local, lotado de rosas vermelhas vivas como sangue. Esperando que as ideias se organizassem na mente, persegui, imperturbada, pelo caminho destruído ㅡ conforme as rosas escalavam mais e mais os caminhos e os espinhos tocavam de leve minha pele, as esculturas perfeitas dos anjos esculpidos no topo das pilastras cantavam uma canção ensurdecedora, eu fazendo de tudo para ignorá-los.

Quando se teme o passado, imaginando princesas aprisionadas nas torres mais altas, espera coragem e fôlego o suficiente para enfrentar o mais mortal dos dragões. Há a espada que se retira do meio dos escombros e você tem certeza de portar o necessário para enfrentá-lo, esse temor desgostoso. Mas as queimaduras beiram terceiro grau. E parece tão horrível quanto qualquer outra coisa, a pele desfazendo dos ossos. Não sei ao certo se os valentes cavaleiros chegaram vez sequer ter pensamentos do tipo, mas não deveria comparar os meus segredos, dores e humilhações. Estupidamente, esqueço a proteção da armadura, a faceta que se sobrepõem à glória. Nunca tive armadura. E o cantarolar ensurdecedor tarde pelas beiras.

Ainda que não esperasse realmente vê-la outra vez a não ser em meus mais absurdos devaneios, ali estava Juyeon do outro lado da pilastra. Os cabelos compridos escorrendo m cachos arrumados como se moldados por Deus ㅡ e não é que eu a tema, mas o conforto ao esburacado e sonhador se arranha pelas beiras da consciência. Ignoro e volto a dançar, costurar, praxe. E eu sei que vai além das batidas  ㅡ o vestido azul turquesa vitoriano pesando o corpo ㅡ a âncora de um veleiro egoísta ㅡ, úmido e extremamente rente ao corpo. Quase deixei o socorro e a lamentação escapar. Sabendo os limites, o não querer. E, ainda assim, o fato de que tudo era irreversível, meus pés em corrida. Não era exatamente como correr em círculos. Era como correr e nunca mais ter noção alguma de onde está.

Juyeon não permitiu. Quando menos esperava, correu para longe de mim, fugindo pelos fundos da casa. A janela quebrada. E então eu me dei conta.

Intangível.

Continuei correndo, procurando por algo que sequer vi, provavelmente ausente da existência, uma realidade inocente, pura, secreta. O cinismo de nunca possuí-lo. Mesmo incerta ㅡ nunca mais ㅡ do pincelar na perna, pescoço e, principalmente, coração, a negação avista. Machucava, tão inalcançável, de modo que, diante de várias janelas quebradas, enxergava a mesma coroa sob a cabeça, suja de sangue.

Estava tudo errado desde o princípio; as mãos curiosas passeando pelo corpo, aquele desafio ansioso, falho, pensando que correr de braços abertos era a melhor opção. Duvidei do camafeu¹ esculpido. O meu. No centro do coração. Sem origem, sem significado...e talvez as brincadeiras vespertinas envolta das estolas de pluma no camarim não passam daquele passatempo oculto por um beijo insignificante, embora dissesse mil coisas duvidosas. Fraca, as costuras arrebentando e o cheiro sanguinário. Parei, mas não impedi.

Nunca soube quem foi Juyeon e não confio que um dia vou saber. Enquanto seu canto ressoa do alpendre, meu estômago pedia por mais, além dos bolos recheados ou socos premeditados. Reações superficiais, embora sinceras. Porque nunca matei aquele dragão. E também porque não posso me permitir. Voltamos ao princípio. Desde o princípio. O impedimento de discursas sobre o belo, o carpe diem, danças agradáveis, delicadas, desafiando coreólogos insistentes. A única a vista, esse temer invejoso. Inalcançável.

Do incompreensível.

Nunca fiz mal a ninguém e mesmo assim me vi no meio das plantas, entrelaçando-me, dançando conforme. Anjos cantando, o corpo se movendo, tomado pela melodia prodigiosa. Assustada, sem nada a fazer. Afinal, temi o intangível, no topo, desaparecendo, talvez inexistente.

Embora materialista, os pertences encharcados com as minhas lágrimas ignorantes. O reinado passou por minhas mãos, e eu temi além do dragão.

A coroa.

Uma garota que ninguém sabia o nome, em um lugar inexistente, fugindo do intangível, sussurrando palavras ininteligíveis.

Quimera.

[...]

Quimera pode ter diversos significados, dependendo como é empregada. Quimera pode ser um peixe, uma figura mítica, um fenômeno genético, entre outras coisas. Quimera também é um substantivo feminino que indica uma esperança ou sonho que não é possível alcançar, uma utopia. Por esse motivo, alguns sinônimos para quimera são: devaneio; fantasia; ficção; imaginação.

¹camafeu (do latim cammaeus, que significa pedra esculpida) é uma técnica de escultura usada em joias de modo a formar uma figura em relevo (em oposição a entalhe) tirando partido da existência de camadas sobrepostas de cores diferentes. Tradicionalmente essa técnica é feita em broches e pingentes.

ㅡ CHIMERA. wjsn | eunxiaoOnde histórias criam vida. Descubra agora