É impossível acreditar. Uma morte tão brutal não pode ter sido apenas um acidente, os repórteres estão escondendo algo atrás de seus dedos agonizantes em microfones azuis e tablets apagados que eles fingem ler. Por conta dessa droga de mistério que a polícia está fazendo, temos um maldito toque de recolher, como se a Terra fosse se partir ao meio porque uma garota voltou para casa tarde.
Billie está criando suas próprias teorias, analisando fotos que vazaram na Internet e vídeos amadores mostrando o Ford detonado, ainda gorgolejante dentro de um rio lamacento. Uma de suas teorias ainda agoniza em minha mente, sem sumir completamente: Kai. Nunca tivemos nada parecido com isso, mas isso foi antes de um certo Demônio da Tasmânia pisar sobre essas terras estrabicas.
Quando a segunda morte fora anunciada, uma mulher num Miata prateado, e Kai sumira por três horas inteiras, as teorias de Billie se tornaram palpáveis e perigosas. Se for mesmo o Kai, tenho apenas que seguir as regras do Nicholas e me manter calada até o outono. Mas, se eu deslizar, só um pouquinho, na atuação, e acabar como o Ford e o Miata, quebrados e manchados de sangue, jogados num caminho que jamais será concluído? Nicholas pediu para que não contasse nada à Ace, que caso ele perguntasse, minha resposta sempre seria positiva, como se a vida não fosse boa o bastante para se importar.
E então, Brie? O que irá fazer caso Kai seja mesmo a fera psicopata que Nicholas descreveu? Nada. O que eu poderia fazer? Ligar para Ace e vê-lo morrer? Não. Não posso fazer isso. Há regras em um quase-namoro sobrenatural, a primeira é: se seu namorado vampiresco não suporta sol, não o chame se for atacada por uma fera que sabe e pode usar essa informação à seu favor.
O pior de tudo veio antes da terceira morte ser relatada e confirmada — um casal, em uma das casas à beira da estrada, escondida naquela mata toda. Foram encontrados apenas partes dos corpos de ambos, partes soltas e enegrecidas, que não parecem humanas. Papai disse que se mudaria quando as chamas baixassem um pouco.
Eu, sem sombra de dúvidas, não posso, em hipótese alguma, me mudar. Não agora. O verão não está próximo de acabar, mas uma estação é sempre uma estação: curta. E Kai não pode ficar sozinho na casa do Nicholas. Se as suspeitas caírem totalmente sobre ele, Nicholas também poderá ser incriminado. Ace também. Eles são os donos da casa, os donos da casa que abriga o possível causador de toda essa arruaça.
Billie saiu cedo. Foi à procura de Kai e me proibiu de seguí-lo. Billie tem batatas fritas no lugar de um cérebro. E eu tenho o óleo que fritou as batatas no lugar de juízo — pois, claro, eu tinha que desobedecer.
Agora estamos aqui, no solto em frente à casa de Nicholas, olhando para as janelas, observando a movimentação exagerada de um Kai nervoso e perdendo o controle sobre si mesmo. Ele rosna de vez em quando, olhando para o céu, como se uma bola flamejante estivesse caindo em sua direção. Ele liga, à cada dez minutos, para alguém chamado Rijo — pelo nome, parece alguém da família. No entanto, pelo que Nicholas disse, Kai tem cerca de noventa anos. Ele era uma criança quando foi transformado, e, a não ser que tenha sobrinhos ou netos, Rijo seria seu pai centenário ou um tio ou qualquer outro parente.
As coisas que ele fala à Rijo não passam de ahams e uma sequência de sims exagerada. Rijo é um verdadeiro tagarela.
Então, Kai desliga sem se despedir, senta-se no umbral, olha para dentro de casa e espera.
— Acho que tem mais alguém lá dentro — disse Billie, baixinho, baixando o binóculo e cobrindo o buraco por onde olhava com um montinho bem feito de folhas verdinhas.
— Mais alguém?
— É, você sabe, alguém que pertença ao mesmo grupo terrorista.
— Terrorista?
— O que você é? Um papagaio?
— Papagaio?
— Brie! — ele girou os olhos e os fechou, Billie sempre o faz quando está irritado.
Peguei seu binóculo e olhei um pouco para o lado contrário à casa. Para além de International Falls.
— Kai não é um terrorista. Ele não tem a cara de quem faria algum ato terrorista — resmunguei, analisando o pico das árvores distantes e microscópicas.
— E como se nomeia isso que ele fez? Psicopatia?
— Você não sabe se foi ele.
Billie caiu em completo silêncio, inspecionando seus próprios dedos com outros dedos que também são seus. A gama ao redor de seu corpo, está amassada e sem cor, ele arrancou algumas e analisou.
— Ouvi você falar com o dono da casa, o tal Nicholas — disse ele, enfim, esticando uma mão para pegar o binóculo.
— Você parece um verdadeiro Sherlock, com escutas e tudo o mais — me mantive de costas para a casa, no momento, desinteressada pela monotonia de Kai e mais interessada no quanto da minha conversa Billie ouviu.
— E ouvi ele falar sobre uma fera, e que ele o ajudou — Billie ainda olhava Kai por trás de lentes de aumento.
Estou completamente desarmada. Não há uma desculpa, uma história inventada para anular as chances de ele achar isso muito estranho.
— Quais a chances de Kai ser a mesma fera de noventa anos atrás? — Billie largou o binóculo, sua atenção agora está voltada só para mim. — E por que você não pareceu em nada assuntada depois de ouvir toda a história?
Abri e fechei a boca sem dizer nada, como um peixe tentando retomar o fôlego estando fora d'àgua. Se ele descobrir sobre Kai, pode descobrir sobre Nicholas, o que o levará descobrir sobre Ace, o que o levará a me arrastar para a Itália quando suas férias terminarem.
— Eu sei que você sabe de muita coisa, Brie. E que esse Nicholas te confidencia coisas demais, coisas que não pode contar ao tal Ace, seja quem for. Mas, sebe Brie? Chegamos em um momento em que segredos não podem ser confidenciais. Eles precisam ser espalhados, editados, escritos em páginas em branco que serão coladas em cada superfície de Minnesota — nunca ouvi voz tão fria e firme, não há vestígio de que Billie sorriu algum dia, é como se ele vivesse no escuro, sem saber o que é estar do outro lado.
— Você não entenderia — sussurrei em resposta.
— Não é para entender, só preciso saber a verdade. Apenas isso.
— Mas, Billie... — engoli em seco, o mundo está desabando completamente. — O Nicholas e o Ace, eles seriam expulsos da Terra. Como uma caça aos Nicholas e Ace.
— O que eles são?
Neguei, com cabeça e mãos,
— Não posso dizer. Não posso. Desculpa.
— Mesmo que o Dweyne, seu próprio pai, possa estar em perigo? Você não contaria?
— Ei, isso é chantagem emocional! — ainda estava negando.
— Não, Brie — Billie segurou meus ombros, olhando fundo em meus olhos, sem desviar um único segundo. — Isso, é a verdade.
— Jura não contar à ninguém? — sussurrei.
— Ninguém.
— Jura? — olhei para meu irmão do mesmo modo maníaco que ele olha para mim. — Você jura, mesmo?
— Juro. Eu juro.
— Eles são... Vampiros.
Billie soltou meus ombros, girou os olhos e os fechou. Assim que os abriu novamente, enquanto minha culpa escorria pelas laterais de seu recipiente invisível, Billie explodiu em uma profunda, longa e super alta gargalhada.
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Verão Taciturno (livro dois)
FantasiEm Verão Taciturno, a série O Falso Demônio ganha uma nova narradora: Brie - a amada de Ace -, e fica ainda mais turbulenta com a chegada de Kai - o misterioso Demônio da Tasmânia. Nessa nova jornada, o sol não se trata apenas de uma lembrança...