II

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É lindo ver o Universo trabalhar. Natã queria um lugar para compor e encontrou um gênio da música, e como veríamos depois, um gênio que reinventou a maneira como víamos a música, confirmando cientificamente o que outros gênios como Beethoven já haviam tentado explicar.
Charles por sua vez, nunca usou de palavras nem qualquer outro meio para se comunicar. Até então era apenas um garoto autista que virava os dias e as noites "vendo" o mundo a sua volta. Parecia estar justamente aguardando que alguém viesse e lhe trouxesse uma ferramenta para iniciar sua comunicação com o todo.
Natã sentia-se como tendo uma pedra preciosa nas mãos. Saíra para buscar ouro e encontrara a maior mina de diamantes jamais imaginada. Tratou de gravar o resto da noite em áudio e vídeo. Antes do fim da madrugada, Charles voltou para sua casa quase arrastado por um Adriano muito temeroso, que não falou palavra com Natã, apenas puxou o irmão e partiu.
Natã começou a correr com a jóia em suas mãos. A primeira coisa que fez pela manhã, pouco antes do sol sair, foi ligar para seu melhor amigo e parceiro de banda:
-Alô? Danilo?? Tá ouvindo bem??
-Oi cara! Tá chiando um pouco, mas pode falar.
-Velho, encontrei o que eu procurava! Não tem como explicar por essa ligação horrível, mas eu preciso que você me mande todos os nossos documentários sobre natureza, universo, reino animal... Manda via motoboy, pague o que for necessário. É um investimento que vale a pena. Eu garanto!! –Disse, sem tentar esconder a animação em sua voz. Danilo ficou em silêncio por alguns segundos e Natã sabia que ele estava raciocinando e gravando as informações, pois acabara de acordar. Um dos motivos pelo qual a amizade dava tão certo, era que um confiava plenamente no outro. Em nenhum momento Danilo pensou em contestar o pedido de Natã e assim que assimilou tudo, respondeu prontamente:
-Ok! Vou começar a separar tudo e pôr numa caixa. Tem uns na sua casa também né? A chave fica no lugar de sempre?
-Sim! No de sempre.
-Bom, então assim que der umas sete horas, eu começo a ligar pros motoboys e o que atender primeiro eu passo a missão!
-Beleza cara! Tá tudo bem por aí??
-Por enquanto tá tudo bem, mas se eu não desligar agora, acho que a Ayana vai me esquartejar! –Eles deram uma risada sussurrada.
-Foi mal cara! Vai valer a pena, eu juro!!
-Mal posso esperar!
-Não perde por esperar mano! Até mais...
-Tchau bro... –desligaram e Natã pôde ouvir a voz rouca e distante de Ayana perguntando "aonde você vai essa hora?". Adorava a inclinação que seu amigo tinha de não deixar absolutamente nada para mais tarde.
Passou o resto da madrugada arrumando a casa, organizando seu improvisado estúdio de gravação, limpando e enquadrando seu projetor e polindo a flauta. Os documentários chegariam sem dúvida antes do meio dia, então ele arrumaria tudo e tiraria um cochilo, pois assim que o motoboy o acordasse, começaria uma maratona de seleção e edição de vídeos.
O motoboy buzinou em seu portão ao meio dia e vinte e oito, fazendo Natã saltar do sofá onde dormira profundamente com ajuda de uma noite em claro e uma dose extra de vinho.
Pegou a caixa que tinha o tamanho de um isopor de dezoito litros e uma grande mochila de campista que o motoboy trazia preso às costas. Quase trinta quilos de documentários. "Deus do céu", pensou Natã, "Como a gente é nerd!", e após agradecer o motoboy, deu uma espiada na casa de Charles. Viu o garoto imóvel e de olhos arregalados pela janela e fez vários acenos com a mão, mas o irmão dele apareceu e Natã pôde jurar que Adriano se assustou ao vê-lo. Natã sentiu um tipo de "perturbação na força" nesse momento e a sensação não era nem um pouco boa. Teve um estalo em sua mente que o fez sentir-se um imbecil enquanto carregava aqueles documentários: acaso teria ele notado que o garoto era um garoto!!?
O vinho o tinha deixado meio longe da realidade por tempo demais e sua empolgação e ambição juntas, ajudaram-no a "esquecer" de pensar com lógica. Não poderia simplesmente começar a gravar com um menor de idade. Precisava da permissão dos pais e isso era tão óbvio que ele ficou constrangido e apressou-se para guardar os documentários, como se todos que o estivessem olhando começassem a balançar a cabeça em desaprovação há sua imaturidade. Como se alguém estivesse olhando.
Entrou no chalé e pôs caixa e mochila num canto. Em seguida foi até o banheiro e se olhou no espelho. Para garantir que tudo desse certo, não podia estar amassado e com barba por fazer, então tomou um banho e se penteou, pôs uma camisa social e jeans pretos, respirou fundo e foi falar com os pais de Charles, para ver o tipo de acordo que estariam dispostos a fazer. Não contaria que era tão talentoso, apenas que tinha talento e que gostaria de ser seu mentor.
Natã estava no portão da casa de Charles, que era um chalé verde claro e muito grande com uma distância de vinte metros até o portão. Ele ia bater palmas, pois não tinha visto nenhuma campainha, mas quando ia erguer as mãos, viu Adriano através da grande janela, e ele sinalizava negativamente e de olhos arregalados, com certo desespero, dizendo que não deveria chamar ali. Natã se conteve, franziu o cenho e deu um passo para trás. Não sabia exatamente o que fazer e ficou imóvel por alguns segundos, olhando para Adriano e tentando arrancar detalhes de porque não deveria chamar, mas o garoto apenas continuava sinalizando negativa e freneticamente.
Natã deu mais um passo para trás e ia dar meia volta. Tentaria mais tarde, mas novamente "alguma coisa" parecia simplesmente impedir que ele saísse dali.
Adriano continuava parado, agora imóvel e sem sinalizar nada. Por trás dele, surgiu Charles. Estava erguido pelos cabelos e sendo sacudido a uns trinta centímetros do chão por um homem branco e alto, que revezava tapas no rosto com socos no estômago do garoto. Natã ficou cego! Saltou o baixo portão e correu os vinte metros como se fossem dois. A porta estava trancada, mas Natã pôs-se a esmurra-la e a tentar arromba-la com o ombro e chutes. Adriano soube que era hora de chamar a polícia, então colocou Charles, que acariciava o lugar onde seu cabelo havia sido puxado, atrás da cortina. Em seguida o garoto discou com as mãos trêmulas o telefone sem fio.
Apesar de não ter um grande porte físico, Natã sentiu a porta quebrar e se abrir. O grande homem branco havia largado Charles e estava cruzando a comprida sala de estar em direção à porta. Era bem mais alto que Natã, mas esse não enxergou nada, apenas voou em direção ao estômago do homem e esmurrou tudo o que pôde. Sebastião estava apanhando no estômago e nas partes baixas de um Natã ainda totalmente fora de controle, empunhando ódio e ferocidade em seus golpes, o que deixou o grande homem branco um tanto desfocado, mas ainda assim, Sebastião era bem maior que Natã e iria a qualquer momento quebrar suas costelas com os fortes socos que investia nas costas do rapaz. O delegado em pessoa não demorou a chegar, o que é mais um ponto positivo de se morar em um pequeno vilarejo onde todos se conhecem. Em menos de cinco minutos após Adriano desligar o telefone, o Dr. Leonel, um homem moreno e corpulento, estava imobilizando Sebastião enquanto o cabo Jorge, um descendente de asiático musculoso, arrancava Natã de cima do outro.
Os policiais ouviram os relatos, começando por Sebastião, que jogava pôquer e bilhar com o delegado há quase oito anos:
-Bastião, o que aconteceu? –perguntou Dr. Leonel.
-Eu táva aqui, em minha casa, quando esse sujeito arrombou minha porta e veio pra cima de mim, esse vagabundo!! –Disse Sebastião aos berros. Natã sentiu seu ódio alavancar quando disparou:
-O que você tava fazendo antes de eu entrar?? Conta pra eles!! –E delegado e cabo olharam para Sebastião, que disse apenas:
-O que? O que que eu tava fazendo seu mocinha? –Natã sentia como se fosse explodir de indignação com a "macheza" do pai dos meninos. Olhou para o canto da sala e viu metade do rosto de Charles descoberto pela cortina. Era um dos grandes olhos azuis da noite anterior, mas a mão do garoto ainda massageava o alto de sua cabeça. Adriano parecia congelado ao lado do irmão, agarrado ao telefone sem fio e com os olhos cheios de lágrimas, tornou a sinalizar negativamente para Natã, que diria mais tarde que apenas soube que Adriano estava pedindo para que não falasse nada sobre já se conhecerem. Respirou fundo e declarou com firmeza:
-Aquele garoto –Começou apontando para Charles, -estava sendo pendurado pelos cabelos por esse "homem", que socava a cara e o estômago dele!! –Sebastião urrou que não era da conta dele, que se tivesse apanhado do pai quando mais novo seria mais homem e mais uma lista de ofensas. Mas nada que Natã ouviu o deixou mais indignado do que a atitude do delegado.
-Bastião, pega leve! –Pediu ele, como se o pai dos garotos tivesse apenas gritado muito alto com o filho.
-Você ouviu o que eu disse?? –perguntou Natã olhando o delegado com incredulidade e raiva, -Esse homem estava ESPANCANDO uma criança!! Esse merda NÃO MERECE SER PAI!!! –Gritou com toda sua força para o delegado, que com um sinal fez o cabo levar Natã para fora, enquanto permaneceu dentro da casa para conversar com Sebastião.
Natã estava muito frustrado e naquele momento reparou que havia se esquecido completamente do que pretendia alguns minutos antes. Ele olhava com raiva para a janela da sala de Charles e se concentrava em sua respiração para manter a calma que lhe restava.
Após minutos agoniantes que pareceram horas, o delegado saiu da casa e sem dizer palavra encaminhou-se para fora da propriedade, dando ordem para o cabo trazer Natã.
-Garoto –Começou o delegado, -você acabou de chegar aqui! Não conhece nada nem ninguém! Não pode simplesmente invadir a casa de alguém e se meter na forma de um pai de educar ou repreender seus filhos! –Natã sentiu como se tivesse tomado um soco no estômago. Jamais ouvira os verbos educar e repreender serem usados em sentido tão oposto ao seu significado. Continuou calado e ouvindo atentamente o delegado, enquanto seu rosto ardia de indignação.
-Eu sou amigo a anos de Sebastião, conheço as dificuldades dele e do garoto. E esse garoto realmente é problemático. "É verdade!", -Pensou Natã irônicamente, "Se ser um gênio for um problema".
-Apenas não se intrometa mais no que não é da sua conta e ficaremos todos em paz! –Encerrou o delegado e antes de entrar em sua viatura deu uma última olhada para Natã e comentou:
-Você deu sorte garoto: ele não quis fazer B.O. Mas a conta da porta vai chegar logo mais pra você! Curte seu passeio e volte pra sua casa, que não é aqui!!
Natã nunca se sentira com tanto ódio e frustração na vida. É sufocante o sentimento de impotência, de saber que alguém a quem você tem apreço está a metros de distância, precisando de você, mas não poder ajudar por impedimento de terceiros, que acreditam mesmo que estão fazendo a coisa certa. Foi um sentimento pesado demais para Natã suportar. Ainda assim tinha aprendido com outros momentos de aflição que já vivera, a manter a frieza e jogar de acordo com as regras. A vitória seria linda: iria arrancar a guarda de Charles daquele monstro, para que ele e o mundo pudessem enfim apreciar a genialidade do pequeno grande homem que só sabia falar o próprio nome, mas fazia da flauta uma extensão de seu corpo. A viatura desapareceu numa curva. Ele ia seguindo pelo gramado de seu chalé cor de areia. Sentiu o coração apertar quando olhou para a janela da casa dos garotos e viu Adriano tentando dar uma colherada trêmula de comida na boca do irmão, que ainda massageava o alto da cabeça.

Charles Mártir E O Segredo Do UniversoWhere stories live. Discover now