Capítulo 05

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Multiplique a espécie no sangue dos inferiores.

Fortaleça a mente e aprenda a arte de manipular

O chamado premiará os dignos de glória

As vozes do oceano envolveram meu corpo, tornando-se mais altas conforme eu descia às profundezas abissais. Eu apressei o nado e cobri os ouvidos, mas era inútil. O mar era parte de mim, e todos os tritões eram parte do mar. Através das águas salinas eu recebia conselhos, sentimentos e intenções, todas disformes e difíceis de rastrear.

O turbilhão sensorial me confundia e desorientava. Eu não sabia se era pela minha origem híbrida, ou porque meu chamado permanecia dormente. Papai Dylan explicou que o único sinal inconfundível era o do predestinado, e que nossa conexão seria tão forte que eu vivenciaria suas sensações físicas e emocionais, e o localizaria de qualquer lugar. Este era um dom exclusivo dos tritões, então no caso dele com o papai Gabe, era uma via de mão única.

A princípio, saber disso me pareceu triste e solitário, mas eu não me importaria do Maikon nunca compartilhar minhas sensações. Na verdade, eu sentia nossa conexão até mais forte que isso.

Com o peito apertado, eu evitei pensar no Maikon. Minha dor pôde ser tocada pelos outros tritões do oceano, e fui cercado de sentimentos de curiosidade, escárnio e pena.

Eu lutei para me bloquear daquelas malditas vozes, esgotando minha paciência. Quando eu era menor os conselhos me fascinavam, mas depois eu só queria que tudo se calasse.

Devo ter desejado com força o suficiente, porque o silêncio enfim me inundou, e me vi exatamente como eu queria: sozinho nas águas frias e escuras ao norte de Waikiki. Diante de mim, meu melhor amigo me aguardava, e ao vê-lo abri um enorme sorriso.

Eu brandi minha cauda azul em um nado veloz e retirei o canivete de pesca do cinto da minha canga. Mesmo no escuro abissal a minha visão funcionava perfeitamente, então admirei meu precioso amigo: Um enorme galeão inglês, naufragado há pelo menos trezentos anos. Era como uma obra de arte oceânica. O mastro, as balaustradas e o casco permaneciam conservados sob a água gelada, e algumas portas ainda funcionavam embora eu tenha removido a maioria, em minhas muitas expedições aos quartos e salões de baile.

Ultimamente, porém, meus encontros com o navio não envolviam explorações.

Eu contornei o imenso casco de madeira e encontrei meu desenho, que por anos eu escavei na lateral. Aquilo começou como uma brincadeira, mas naquele momento haviam centenas de passagens contando etapas da minha vida, e momentos importantes, ou apenas cenas legais que encontrei no caminho da escola.

Eu acariciei os entalhes, percebendo o quanto meu traço estava evoluindo. Os rabiscos aos poucos ganhavam profundidade, e sombreados, e gestos graciosos, embora os motivos variassem radicalmente. Minha primeira vez num buffet de sorvete, aquele dia em que Maikon encontrou uma concha gigante, o dia em que papai Gabe pescou um peixe sem ajuda pela primeira vez... e também momentos importantes, como os prêmios que o Maikon ganhou, e sua primeira manobra aérea, e...

Hum, pensando bem, metade daqueles desenhos era o Maikon. Não que isso fosse ruim, até porque eu já sabia minha próxima adição.

Empunhando o canivete, eu cheguei ao fim dos desenhos e entalhei a madeira com a lâmina afiada, traçando riscos meticulosos num pequeno espaço livre.

Quando parecia pronto eu me afastei e apreciei a obra do dia: Maikon olhando diretamente para mim, com seu olhar luminoso e vívido após nosso primeiro beijo.

Eu lambi os lábios, lembrando daquela sensação que para mim foi tão boba. Mas se foi importante para o Maikon, então merecia ser imortalizado. Eu registraria tudo o que fosse importante, e assim eu nunca iria... esquecer.

Ondas em Rebentação (AMOSTRA)Onde histórias criam vida. Descubra agora