Capítulo 4

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A chuva demorou a passar. No nosso abrigo, chegaram a pingar do teto de madeira e palha algumas gotas frias, mas meu canto estava protegido. Embaixo do meu cobertor, Tito parecia não se importar com nada. Seu frágil corpo nu se agarrava ao meu em busca de calor e proteção. Eu cuidei para que sua cabeça ficasse oculta da luz fraca da lamparina, no caso de algum peão se aproximar. Mas isso não aconteceu.

Muitas horas se passaram até que todos dormissem de fato. Quando todos estavam roncando e a chuva já tinha diminuído, eu planejei uma forma de fazer o Tito sair sem que ninguém o visse. Toquei-o no queixo e ele não acordou, mexi em seus cabelos e nada, então apertei seu ombro e ele sobressaltou-se, quase a ponto de fazer barulho, o que eu impedi cobrindo sua boca com a mão.

— Xiiii, quieto! — sussurrei. — Você tem que ir agora. Tome cuidado.

Ele balançou a cabeça afirmativamente. Me pus sobre meus braços, apoiado pelos cotovelos com Tito embaixo de mim, e sondei os vizinhos de cama. Pareciam crianças inofensivas. O mais jovem deles, conhecido como Pito, dormia com a boca aberta. Nilo vivia sonhando com mulher, mas eu sabia que ele dava moedas a qualquer um que quisesse lhe pagar um boquete. Comia o Doca no mato ou no banho quando ele estava bêbado. Bicho safado! Vez ou outra jogava indiretas sobre meu celibato voluntário.

Lentamente, fui levantando, tomando o cuidado de não fazer ranger as tábuas da cama, e peguei as roupas de Tito embaixo da manta. Senti o frio do ambiente quando pisei descalço no chão. Tito sentou-se e me observou enquanto eu me vestia, esfregando os olhos, tentando se localizar na pouca luz. Peguei sua camisa e o ajudei a vestir-se, assim como a capa. Ela estava no mesmo lugar de antes e era uma prova contra o Tito caso alguém a reconhecesse. As calças não dava para vestir ali, sendo assim, as entreguei na mão de Tito e lhe joguei em cima o cobertor. Ele não protestou. Enrolei-o com a grossa manta de lã fazendo um grande "embrulho", peguei esse embrulho com dificuldade e coloquei sobre meu ombro direito. Rumei para a saída, sendo que para chegar lá eu deveria passar por todas as outras camas. Passei por essa etapa com sucesso, porém, ao chegar à porta tive que pôr o embrulho no chão enquanto a abria porque ela tinha sido trancada. Essa porta, em condições normais, já rangia, depois de muita chuva então ela gritava praticamente. Suspirei quando o barulho dela ecoou por todo o quarto. Fechei os olhos e esperei que alguém murmurasse algo ou se levantasse. Talvez graças ao Espírito da Montanha, no qual o Tito acreditava, ou ao Santo, padroeiro da fazenda de Seu Epaminondas, nada aconteceu. Eu, que fui criado numa missão onde fiquei até os doze anos, disse graças à Deus.

Do lado de fora estava escuro e úmido. E frio, muito frio. Pus o Tito no chão e o ajudei a se vestir direito para sair no tempo aberto. Ele colocou a capa, eu joguei uma manta sobre seus ombros e ele saiu correndo pela escuridão depois de um beijo rápido de despedida. Esperei que ele se afastasse, depois saí do beco para acompanhá-lo de longe. Era pouco provável que alguém o perseguisse devido ao horário e as condições do tempo, mas eu achei certo prevenir. Quando voltei ao alojamento, o Nilo estava acordado, apoiado sobre um cotovelo.

— Foi aonde com esse tempo, capataz?

— Fui mijar, Nilo. — Voltei para a minha cama, mas ele foi atrás. Tive receio de que ele tivesse visto alguma coisa comprometedora, mas aparentemente não tinha.

— Tô preocupado é com o Doca. Ele não devia ter ido para aquelas bandas.

— Não devia mesmo. Amanhã vamos descer eu procurar por ele. Tomara que ele esteja bem.

Nilo ficou melhor depois de falar comigo, e voltou a se deitar. Isso me deixou mais tranquilo. Também me deitei e dormi até o sol principiar a nascer. Depois da tempestade, raiou um dia lindo, e ninguém diria que tinha acontecido coisas ruins naquela noite de chuva.

O Tesouro do Capataz (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora