Ella - Uma história de amor e morte

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Conheci Ella no mesmo dia em que nasceu. Estive presente em seus primeiros dias de vida. Cheguei muito perto daquele frágil bebê choroso. Confesso que fiquei curiosa e me atrevi a olhar mais de perto. Sempre muito próxima a ela havia uma mulher de cabelos pretos e rosto redondo. Nós dividíamos a vigília ao lado d'Ella. Essa mulher estava pálida e profundamente abatida. Geralmente não é um detalhe ao qual eu me apego, eu só vou para fazer a passagem, um contato muito breve.

A cada vez que eu me aproximei d'Ella, fiquei a contemplar os seus gestos largos, mesmo com membros tão minúsculos.

Eu poderia dizer que amei Ella desde o momento que a vi. Mas vocês ainda, mesmo depois de tantos anos, incompreendem o que vocês mesmos chamam de amor. Posso dizer que meu ofício é irredutível e inevitável, mas não quando se trata d'Ella... A mera certeza de que ela está no mundo me faz sentir plena e é a isso que me rendi. À esse desejo de fazer dela especial, pois para mim ela o é, e a maneira que eu poderia mostrar isso a ela é lhe dando a minha ausência, por mais que ela me chame.

Não pense que eu deixo de fazer o meu trabalho por dedicar minha sempre tão ausente atenção a Ella. Isso é outra coisa que nenhum de vocês entenderiam. Enquanto seus olhos repousam e deslizam por essas palavras, algum lugar do mundo está em guerra e pessoas estão gritando pedindo socorro. Geralmente não dou atenção a tudo, já mencionei isso. Vou só fazer a passagem. Pois bem, estou lá e aqui, e em qualquer lugar do mundo em que eu precise estar. O fato de eu ser capaz de fazer isso compreendo ser difícil de entender. Afinal, nas suas leis, dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço, o que dirá esse um ocupar vários. Mas eu não sou necessariamente um corpo.

Ella sempre foi uma menina instrospecta e silenciosa. Ela não sabia o quanto eu adorava os seus silêncios. Sempre senti que ela me esperava. Por vezes eu me ausentava por muito tempo e rapidamente eu era chamada. Como se fosse irreal a vida sem uma perspectiva de morte.

Nunca tive coragem de fazer a passagem d'Ella. Há lugares do outro lado que até em mim causam arrepio - e eu nunca mais a veria. Acredito que morrer seja assim.

Não sei dizer se ela é bela. Digo que para mim o é. Digo que meu referencial de beleza é ela e a ela comparo todas as outras. Quanto mais parecida com ela, mais bonita me parece. Já vi de todas as formas de vida possíveis, de todos os jeitos, formatos, cores. Faz parte do meu trabalho conhecer todos. Sendo assim conheço a vida, e nessa que assisto passar por tanto tempo, é ela o meu filtro do mundo. E o mundo através dos olhos dela é o melhor que eu pude conhecer.

Exerço o meu ofício a mais tempo do que é possível se lembrar. Tenho por nome um substantivo feminino e frequentemente sou representada por uma figura do sexo masculino, então fique a vontade para me dar a forma que pra você a morte tem. Sei da necessidade que vocês possuem de dar forma e peso para tudo, além de valor e sentimento, para que o adjetivo seja palpável. Eu os conheço a mais tempo do que poderiam se lembrar... Já devo ter mencionado isso. Estou ficando velha.

Tenho receio de atribuir determinados adjetivos ou virtudes para qualquer coisa, pois para certas coisas ainda não há uma palavra que defina algo tão complexo para seres de vida tão curta quanto a de vocês.

Depois daquele bebê frágil e choroso, voltei a ver Ella várias vezes muitos anos depois. Acabo pulando alguns quando perco as contas. Não a reconheci de imediato e por muito pouco não a toco para fazer a passagem. Parei observando o quanto ela era jovem. Eu ouvi ao chamado daquela garotinha e isso me invadiu de tristeza.

Eu não posso fazer isso.

Ela me chamou, eu vim. Vou fazer o meu trabalho e ir embora.

Ela tinha aquela graça juvenil de quem não é criança e nem adolescente ainda. Olhei ao redor. Aquele deveria ser o cômodo da casa que lhe pertencia. Na cama havia espaço para apenas um dormir. Os tecidos, as paredes, as coisas ao redor, tudo parecia ter muita cor, mas acho que ela não via. Havia um cinza nos seus olhos molhados. Ela tomava comprimido a comprimido, abafando os soluços com o próprio punho.

Ella - Um conto de amor e morteOnde histórias criam vida. Descubra agora