Camila fumava um maço de cigarros por dia. Não passava nem perto de sua cabeça mudar esse hábito. Acordava, fumava um cigarro. Almoçava, mais um cigarro. Hora de dormir, porque não um cigarro? E a vida ia bem. Faculdade, trabalho, casa. Nada demais acontecia e nem deixava de acontecer.
Era começo de abril e de semestre. Finalmente começo de semestre. Camila começava a achar que a faculdade não a deixaria se formar nunca com suas greves infinitas. Estava animada (fumou um cigarro) e ansiosa (mais um cigarro). Começo de semestre significava novas pessoas e Camila tinha medo de novas pessoas e do poder que elas tinham de estragar tudo. Mas também não conseguia deixar de se fascinar por cada nova história e cada novo ser que conhecia.
Não demorou muito para que Camila cruzasse com Daniel. Não deu a mínima para aquele garoto introvertido de péssimas piadas e nenhum senso de humor. Haviam tantas histórias e pessoas mais interessantes pra se conhecer. E Camila as conheceu e as absorveu como quem sorve um sorvete. Fez com que aquelas histórias se mostrassem às suas e a dobrassem a mudar. E mudou.
Aos poucos foi percebendo que tudo que era novo a levava a Daniel. Ele estava em tudo e era parte de tudo. Logo a introversão virou charme, e a vontade de descobrir quem se escondia debaixo daqueles cachos e olhos se tornou quase insuportável. Aos poucos, ela foi absorvendo com tanta intensidade a essência de Daniel que até as péssimas piadas passaram a ter graça, até o que parecia ser falta de senso de humor viu-se transformado em ironia sagaz.
Camila foi deixando que Daniel a transformasse completamente. Foi fazendo suas histórias ficarem marcadas no peito à ferro, pois não se atrevia a deixá-las escapar. Incorporou Daniel à sua mente e corpo, deixou que seu cheiro impregnasse a pele e as narinas, deixou que seu toque tatuasse a pele em tinta invisível que só ela era capaz de perceber.
Se deixou levar até que Daniel passou a ser mais vital que seu cigarro. Não fumar era complicadíssimo, mas não ter Daniel era inconcebível. E sem se dar conta, nessa mistura de experiências e corpos e histórias, Camila se viu mergulhada em Daniel, sem ter como sair para tomar ar.
Infelizmente, para Daniel as coisas eram diferentes. Ele havia absorvido o que podia de Camila e isso não era o suficiente. Camila não era o suficiente para fazer seus pés tremerem e seu coração aquecer, não como ele era pra ela. E pra acalmar o frio que tomou conta de seu coração, Camila fumou.
E fumou.
E fumou.
Fumou até que uma nuvem preta de fumaça começou a acompanhá-la para todo lugar que ia. E começou a se fechar dentro dessa nuvem, onde poucos conseguiam penetrar. Daniel conseguia, mas não queria. Camila, para tentar mascarar a dor, fez da fumaça mais densa, tentando em vão manter Daniel do lado de fora. Acontece que Daniel era luz, e mesmo que não quisesse, emanava em Camila, que não conseguia se desvencilhar.
Aos poucos Camila desistiu de se esconder e deixou de lado sua nuvem preta de fumaça. A luz que sentia de Daniel era tão forte e brilhante que Camila foi parando de fumar. Tinha esperanças de que quando se livrasse de toda a fumaça, também se livraria da dor, e que Daniel finalmente veria que ela não era escuridão.
Acordou um dia e decidiu que aquele cigarro de depois do café seria o último. Fumou e aproveitou cada segundo. Estava animada, hoje seria diferente. Foi com a maior das felicidades que se encontrou com Daniel. Ele continuava brilhando tão forte quanto o sol, iluminando e aquecendo o coração nervoso de Camila.
Um papo jogado fora, amenidades discutidas, Camila decidiu que era hora de contar a novidade. Abriu um sorriso e disse, "Daniel, hoje fumei meu último cigarro." Olhou para ele, aguardando uma reação, um vislumbre de mudança na maneira como ele a via. Mas viu apenas a mesma luz de sempre, a luz dele, enquanto ele falava, "Que bom. Sua saúde agradece."
Camila murchou, mas tentou não demonstrar. Tinha certeza que assim que falasse, as coisas iriam mudar. Ela podia sentir as coisas mudando dentro dela.Mas acontece que Daniel não via em Camila a escuridão que ela achava emanar. Tampouco via luz. Ele era tão indiferente que não via nada, além de sua própria luz refletida.
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Lusco-Fusco
Short StoryUma menina e seus cigarros (e o menino que fez os cigarros desaparecerem).