Quem olha o sorriso despretensioso e relaxado de Marina enquanto dorme mal consegue imaginar que, no minuto em que seus olhos se abrem, ele murcha como as rosas vermelhas solitárias do vaso da sala.
Ela se levanta com a apatia de quem já repetiu essa rotina pelo que parecem milênios. Abre a janela e tenta enxergar o mar no meio dos muitos prédios que a cercam. Muitos dizem que ela está louca, mas ela jura que já vislumbrou sua superfície azul e cintilante através daquela janela, em dias de calor e mormaço quando a vida parecia que estava parada no tempo.
Pega seu cigarro e acende enquanto se senta no parapeito e encosta a cabeça na rede de proteção. Fecha seus olhos e suspira. "Droga". O gato em sua cama espreguiça despreocupado ao ouvir sua voz.
Respira fundo e reúne todas as suas forças pra sair do quarto e enfrentar o dia cinzento lá fora. Pra enfrentar ele. O motivo dos seus sorrisos sonolentos e dos seus suspiros de tristeza ao acordar e encarar a realidade.
Sai do quarto com a certeza de que deveria nem ter acordado e vai até a cozinha. Passa um café amargo como o gosto da ansiedade na sua boca. Ela ouve ele acordar e abrir as janelas do seu quarto. Resolve que não está pronta e decide correr até o seu quarto e fumar mais um cigarro antes de lidar com a situação. No meio do caminho é interrompida com o abrir da porta às suas costas e um oi mais gelado do que o tempo lá fora. "Oi", ela resmunga, sem se virar, "fiz café". "Ta bem", ele responde, tão indiferente que reabre todas as feridas que ela jurava estarem quase curadas. Ela suprime um gemido de dor e entra no quarto, fechando a porta com rapidez e rezando pra que ele não tivesse percebido as lágrimas que insistiam em cair dos seus olhos.
Fuma um cigarro e pensa no que a levou até aquele momento. Pensa em Henrique. Ela mal consegue pensar em seu nome sem sentir seu corpo todo se contrair em espasmos do mais genuíno sofrimento. Pensa nas noites sem fim que passaram conversando e se perdendo um no outro. Foram confissões sussurradas no meio da madrugada enquanto um galo cantava distante. Foram carinhos e cuidados trocados em manhãs frias de inverno, que faziam o coração esquecer o andamento das estações e se tornar verão.
Lembrou da primeira vez que adormeceram nos braços um do outro, ao som de uma música há muito esquecida. Como encaixaram corpo e alma e se apertaram até se tornarem um e perceberem que já não existia solidão. Como permaneceram assim a noite toda e só se permitiram acordar depois de decorarem cada centímetro da melhor conchinha do mundo.
Lembra dos cúmplices olhares que trocavam no meio da multidão de amigos que os cercavam quando queriam ir pro seu universo particular. Quando precisavam um do outro e de ninguém mais.
Foram noites viradas, noites dormidas, manhãs preguiçosas, segredos divididos. Foi um lar no seu sentido mais puro, desses que não precisa de paredes para se tornar indispensável. Foi uma amizade que nasceu e cresceu tão rápida quanto acabou. Um ano. "Um ano não é nada", resmunga Marina enquanto traga e faz carinho no seu gato. "Nosso gato".
"Mas ele não era mais 'nosso', era? Assim como a 'nossa casa' logo não seria mais 'nossa'." Marina pensou. "Não existe mais 'nós'."
Ela só queria ter o poder de voltar no tempo, mas ela sabia que de nada adiantaria. Porque também sabia que tinha se apaixonado por ele muito antes do que gosta de admitir. Porque ela sabe que, desde aquela primeira vez que tinha dormido nos braços dele, o que seu coração tinha sentido era muito mais profundo e perigoso do que amizade.
Ela traga e fecha os olhos. Estremece e se abraça, mas não se afasta da janela. O frio que sente nada tem a ver com o tempo cinza. Já não segura mais as lágrimas que lhe enchem os olhos. Como pôde ter sido tão estúpida? Como pôde ter deixado as coisas acontecerem como aconteceram?
Sem que queira, sua mente a carrega para a fria noite de setembro quando tudo mudou. Se lembra de como estava feliz ao caminhar ao lado dele, de volta ao seu universo particular. Se lembra de como foi natural se deitar ao seu lado e reclamar um abraço para esquentar os pés. Se lembra de como aquele abraço rapidamente se transformou e aqueceu o coração. Se lembra de todos os toques hesitantes, de todo o carinho que ela nem sabia que guardava mas que naquela noite deixou transbordar. Se lembra de como ela sentiu seus corações baterem como um, mesmo que por poucos instantes.
Mas também se lembra da pergunta do dia seguinte. "Você quer tomar banho primeiro ou vou eu?". A indiferença frente ao que tinham experienciado foi pior do que qualquer balde de água fria. "Pode ir primeiro." E ficou deitada na cama tentando organizar os pensamentos e suprimir a maré de sentimentos que insistiam em tentar lhe afogar.
Abre os olhos, percebe que o cigarro estava apagado. Seca as lágrimas e acende mais um. Da uma longa tragada. "Hoje vai ser um dia longo." Tenta afastar o turbilhão que ameaça tomar conta de seus pensamentos, inutilmente. Logo sua memória a transporta para a quente noite de verão que começou o fim.
Aquela noite onde ela resolveu confiar que o que existia entre eles não passava de amizade. Mas que tipo de amizade é essa que não suporta a proximidade sem que se torne a mais ardente das paixões? Que tipo de amizade é essa que transforma a melhor conchinha do mundo em uma confusão de carícias e gemidos na calada da noite? Que tipo de amizade é essa capaz de confundir a cabeça de Marina o suficiente pra que ela se esquecesse que é Marina e se tornasse Henrique?
Marina volta ao presente e olha pela janela. Suas mãos tremem, geladas. Ela suprime um soluço mas, ao fazê-lo, abre espaço para que as lembranças das palavras de Henrique flutuem pela sua mente. "Só amigos", "não sinto o mesmo", "não sei o que te dizer". A cada palavra um novo soluço irrompe por seus lábios e ela não mais é capaz de contê-los. Fuma seu cigarro para tentar aquecer o gelo que se formou ao redor de seu coração, em vão. Pega seu gato, o aperta forte e fecha os olhos, com o rosto virado para o vento gelado que entra pela janela, rezando para que ele secasse suas lágrimas e apaziguasse sua dor.
O gato foge de seus braços, mas Marina não se move. O cigarro em sua mão queima com a vagareza com que o tempo parece estar passando para ela. O vento não é capaz de secar suas lágrimas que teimam em continuar caindo. O fluxo de seus pensamentos só é interrompido pelo som de seus soluços.
Ela é trazida de volta à realidade pelo barulho de sua porta sendo aberta. Abre os olhos e tem a impressão de que está vendo o cintilar do mar, mas logo percebe que o brilho vem de suas lágrimas que se acumulam nos cílios. Olha para a porta e percebe que seu gato estava batendo para sair, e ela não havia percebido. Mas Henrique sim. Ele estava parado na porta, olhando para ela. Abriu a boca como que para falar alguma coisa, gesto que tinha repetido tantas vezes que Marina já havia perdido as contas. Ao invés disso, Henrique limpa a garganta e murmura alguma coisa sobre estar saindo.
Marina espera ouvir o barulho da porta de casa se fechando para se dirigir para o corredor. Lá, espia pela fresta da porta entreaberta de Henrique, com o coração aos pulos. Jamais admitiria isso para si mesma, mas precisava ter certeza de que suas coisas continuavam lá. Tinha medo do dia em que não estariam, e sentia que esse dia se aproximava com uma rapidez assustadora. Temia que uma vez que ele fosse embora, não voltaria, e não podia suportar a ideia de que ele viraria apenas lembrança.Ou pior, cessaria de existir por completo.