Prólogo

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O dia do acidente eventualmente corre em flashes em minha memória. Minha mãe finalmente havia conseguido me arrastar pro parque de diversões - provavelmente seu lugar preferido no mundo todo. A tarde fora longa e eu estava exausta. Fomos em absolutamente todos os brinquedos, jogos e formas de entretenimento que ela encontrasse. Comemos até não aguentar mais: churros, pipoca, algodão doce, chocolate, frutas no fondue de chocolate, maçã do amor etc. A minha bolsa já estava cheia de brindes e prêmios: bombons, pelúcias e até um balão ia amarrado na bolsa pra não escapar. Eu achava risível a imagem de uma adolescente de 16 anos e sua mãe carregando muito mais brinquedos e comida do que qualquer criança no parque.

Anelise, minha amiga e mãe, havia tirado o fim de semana para sair comigo. Isso não era incomum. Ela estava particularmente animada, me ensinando várias técnicas de fotografia, poses para fotos... Ela era muito mais divertida que eu.

Voltamos de lá no momento certo do pôr-do-sol, quando tudo fica rosado e alaranjado. Paramos o carro e encostamos numa curva da estrada pouco movimentada para tirar fotos da paisagem e algumas fotos de nós mesmas. Eu acho que não me lembro de tê-la visto tão feliz assim em anos mesmo que a felicidade fosse sua fiel companheira desde que eu fosse capaz de lembrar. Papai já havia ligado algumas várias vezes para saber que horas voltaríamos e se estava tudo bem. Era a cara dele, sempre tentando controlar tudo e tomar conta de todos.

Foi quando ela deu partida no carro e colocávamos os cintos que o mundo desmoronou. O som estrondoso, o impacto, o carro despencou vários metros num barranco da beira da estrada. Se tivéssemos tirado uma foto a menos teria dado tempo dela colocar o cinto. Apenas alguns segundos antes e talvez ela tivesse sobrevivido. Naquele dia, ela colocou a chave na ignição antes de colocar o cinto e isso foi o suficiente. As horas que sucederam o acidente foram um pesadelo pessoal do qual nunca me livrarei.

Eu estava de cabeça pra baixo. A minha cabeça estava explodindo. Meu corpo doía mas era como uma memória de uma dor. Nada parecia real. Naquele dia eu perdi muito mais do que poderia imaginar. Eu tateei em busca da minha mãe, mas ela não estava do meu lado. Tudo parecia confuso demais. A minha bolsa, que antes estivera no meu colo, agora estava caída no teto do carro que estava de cabeça pra baixo. Eu soltei o cinto antes de pensar em como cairia e isso me causou alguns machucados extras. A porta estava quase completamente solta das dobradiças facilitando minha saída. Peguei meu celular e tentei ligar pra mamãe, mas o celular dela tocou dentro do carro. Guardei o meu para ligarmos para o socorro quando estivéssemos juntas.

Eu não pensei essas coisas passo a passo. Não foi planejado. Tudo acontecia muito rápido e ao mesmo tempo parecia estar em câmera lenta. Muitas coisas passaram batidas, como o fato de que eu poderia ter ligado imediatamente para o socorro e resgate pois eles a encontrariam e logo poderiam ajudá-la. Olhando agora parece óbvio, mas minha mente foi por outro caminho. As coisas aconteceram como aconteceram. Não sei no que você acredita, mas a partir desse dia eu passei a acreditar.

Chamei tão alto pela minha mãe que quando o resgate chegou, eu estava sem voz. Comecei a andar por todos os lados procurando por ela e a noite caía cada minuto mais escura. Então eu percebi o outro carro. Um homem estava dentro. Tentei chamá-lo. Minhas pernas pareciam anestesiadas. Eu sangrava, não sabia dizer por onde. Nunca estive tão atordoada. Ele estava desacordado, mas não estava sozinho no carro. Na cadeirinha de bebê no banco de trás uma menininha berrava chorando tanto quanto eu gostaria de estar. Baixinho no carro tocava algo que reconheci como uma música dos Beatles. A música era estranhamente nostálgica e feliz pro momento.

O carro deles tinha deslizado pelo barranco sem capotar. Quando eu abri a porta traseira do carro do lado do bebê, o carro deslizou me arrastando pelo chão, cheio de pedregulhos, por alguns metros.

Levantei e comecei a soltar a cadeirinha de segurança dela do carro. O tranco que o carro deu fez com que ela chorasse ainda mais e dessa vez eu sabia que meus joelhos sangravam porque ardiam muito. Avistei uma boneca de pelúcia no chão e pensei que talvez isso fosse ajudá-la. Coloquei um pé dentro do carro e me estiquei pra alcançar o brinquedo. Um pé fora do carro. Uma cadeirinha de bebê solta. Meu corpo estava por cima da menina que estava dividida entre chorar até rasgar os pulmões e me observar curiosamente.

Alcancei a boneca e segurei com força. O carro deslizou por muito mais metros do que antes e colidiu numa árvore. Eu nunca senti tanta dor. A menina mal havia saído do lugar no banco e agora estava menos desesperada vendo a boneca na minha mão. Consegui fazer apenas quatro coisas após isso. Dar a boneca pra criança, ligar pro socorro, deixar meu corpo cair no chão do carro como fosse possível e chorar até finalmente desmaiar.

O enfermeiro disse que de acordo com os paramédicos que me encontraram desacordada com a menina segurando minha mão e a boneca. Ela não sabia o que estava acontecendo e brincava como se estivesse na sala de sua casa. Não se deu conta de que o pai morreu no banco da frente ou das múltiplas fraturas que a estranha à sua frente sofrera.

A minha mãe foi encontrada muitos metros acima de onde eu fui parar porque no primeiro impacto seu corpo foi projetado pra fora do carro. Ela provavelmente morreu na hora ou talvez isso seja algo que dizem pra diminuir a nossa culpa de sobrevivente e sofrimento de imaginar um ente querido agonizando sozinho por horas a fio.

Disseram também que o carro teria despencado de qualquer jeito e que talvez eu estar lá tivesse salvado a menina de se machucar. Ou ser atacada por animais selvagens. Na mais simples das hipóteses deles eu era responsável por tranquilizar a menina que talvez não guardasse nenhuma memória do momento porque eu havia quebrado o momento trágico recuperando a boneca dela.

Ela se chamava Penny. Os pais eram beatlemaníacos e a nomearam por conta da música Penny Lane. Eu ouvi aquela música repetidamente nos dias que se sucederam. Por algum motivo não relembrava o trauma, mas me tranquilizava.

Eu acordei atordoada e grogue no hospital. Olhei ao redor e me vi sozinha. Gritei pela pessoa que eu mais queria ver e então me lembrei do porquê. Gritei repetidamente.

- Mãe! Mãe! Mãe! - Até que um enfermeiro apareceu correndo pela porta e me acalmou.

Eu não lembro o que ele disse, mas lembro de saber que ela estava morta e meu pai não estava lá comigo. Ele sequer esperou por mim para enterrá-la. Eu me despedi no cemitério, meses depois. Durante semanas os enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, psicólogos, faxineiros do hospital eram tudo o que eu conhecia e via.

Não. Isso é injusto.

Logo que acordei muitas pessoas da escola, algumas eu sequer conhecia, me visitaram no hospital. Duas de cada vez. A fila era interminável. O quarto se encheu de flores e eu não acreditava nas palavras de quase ninguém ali. Exceto Ethan, meu melhor amigo.

Ele me visitou diversas vezes. Levou meu notebook e viu diversos episódios de série comigo, acordou com meus gritos durante a noite enquanto eu sonhava com o acidente. Ele esteve comigo nas sessões de fisioterapia para que eu voltasse a andar normalmente e articular todos os meus movimentos. Ele leu tudo sobre o tipo de trauma que eu sofri e tentou me ajudar de todas as formas. Ele me levava besteiras como chocolate e Doritos. Reclamava da escola e tentava fazer eu me sentir uma sortuda porque não seria reprovada mesmo faltando todas as finais. Eu faria as matérias no ano seguinte com a matéria do segundo ano. Ele basicamente me contou tudo o que aconteceria na minha vida escolar porque ele sabe que eu surtaria sem saber o que está previsto para o meu futuro.

Meu pai me visitou duas vezes, mas mal conseguia olhar no meu rosto. Ele sentia repulsa e me culpava e eu podia sentir isso. Cada músculo do corpo dele transmitia exatamente esta mensagem.

Eu só podia agradecer a amizade de Ethan e a conexão que havia criado com Nora e Penny, pois elas também né visitavam com frequência. Nora e eu estávamos de luto por alguém que amávamos e essa conexão não precisa de muitas palavras. Você sente e a pessoa sente. Às vezes cai uma lágrima, mas ambas escolhemos encarar de frente e aprender a aceitar.

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JulesBSide

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⏰ Última atualização: Jul 22 ⏰

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