Toda vez que falamos de sequestro da subjetividade, estamos
evocando o contexto de risco em que está situada constantemente a nossa
singularidade. No caso do sequestro do corpo, como já vimos, o que há é o
roubo da materialidade. O corpo é trancafiado num cativeiro e vive as limitações
que são próprias dessa forma de prisão. Mas quando falamos de sequestro da
subjetividade, não há a necessidade de cativeiro material. O roubo é mais
profundo, pois é levado muito mais que a materialidade da vida.
Trata-se de uma invasão suave, mas nem por isso menos violenta,
de territórios que pertencem ao singular, a subjetividade; e o acesso
inescrupuloso àquelas realidades do sujeito particular, forçando-o a desprender-se
de si mesmo para viva uma forma estranha e socializada de escravidão e
dependência.
Os cativeiros não podem ser localizados, nem há "pedido de
resgate". O que há é um movimento silencioso de posse de tudo aquilo que o
outro é. Posse que se transmuda aos poucos em processo destrutivo e
irremediável.
Num primeiro momento, o sequestro tem as mesmas carac-
terísticas da conquista. O traficante, por exemplo, nunca aborda violentamente o
seu futuro dependente. Ele o seduz com gentileza, atenção. Não cobra pelas
primeiras porções, porque sabe que a vítima precisa ser conquistada. Depois de
firmada a dependência, o que se vê é a intolerância, a relação desumana. Depois
que a relação se estreita, o que se percebe é o estabelecimento de um processo
semelhante ao sequestro do corpo: a condição de vítima. O outro exige o que não
é direito seu exigir. Ultrapassa os limites que deveriam ser preservados e pisa com
pés sujos a dignidade que merece reverência, porque é sacral.
Sequestros da subjetividade acontecem o tempo todo. Todos
nós estamos expostos aos riscos. Não é necessário muito tempo para que alguém nos leve de nós. Uma palavra, um olhar, uma opinião, tudo pode ser
laço que nos prende e aos poucos nos leva de nós.
Foi o que aconteceu com aquela menina...
Ela chegou em mim com os olhos cheios de medo. Bonita,
nascida em uma família bem estruturada, a menina começou a relacionar-se com
um amigo de colégio. No início, era apenas uma aproximação despretensiosa, e por
isso a família não viu a necessidade de intervir. "Coisa de adolescente", como dizem
os mais velhos.
Os encontros eram ocasionais e o rapaz nem chegou a
conhecer os familiares dela. Ele não se interessava em conhecer o seu mundo,
confessou-me ela na tentativa de vencer o medo.
A história começou a ficar mais séria quando, meses depois, os
pais perceberam os maus resultados no colégio. Pela primeira vez, a garota tinha
um desempenho insatisfatório; fora brilhante até então. Com tais resultados
surgiu também uma tristeza desoladora. A menina mergulhou num processo
terrível. Tentou duas vezes o suicídio.
Aquela menina que, até então, tinha uma vida tranquila, cheia
de sonhos e amigos, agora tinha que enfrentar um quadro depressivo
profundamente perigoso.
Levada a um terapeuta, finalmente as razões foram conhecidas.
A menina estava apaixonada pelo rapaz há mais dez anos e, desde
que ficaram juntos pela primeira vez, ele a transformara num objeto de seu
prazer. Ao contrário do que ela sempre dizia, nunca namorou o rapaz. Ele
mantinha um relacionamento de mais dois anos com uma outra menina. Ela era
a "outra" e sempre soubera disso.
Com apenas dezesseis anos, aquela menina já tinha enfrentado,
sem o conhecimento de seus pais, os perigos de um aborto caseiro, feito por
meio da ingestão de comprimidos, com o intuito de expulsar o filho indesejado
de seu ventre. Ele a obrigara a fazer tudo isso.
As humilhações eram comuns. Ela confessou-me que o rapaz só
a tratou carinhosamente nas primeiras semanas. Assim que ele percebeu o
sucesso da conquista, seu comportamento mudou. Ele não tinha o menor
respeito por ela. Não a procurava, senão para sua satisfação pessoal. A menina
cumpria o papel de "prostituta socializada".
Ela sabia de tudo isso, mas não adiantava saber. A razão do seu
sofrimento era essa. Ela não conseguia romper com ele. Ela havia perdido a
capacidade de dizer "não" aos pedidos dele. Por mais que reprovasse seu
próprio comportamento, ela temia fechar o único acesso dele à sua vida.
O conflito ficou estabelecido e naturalmente a angústia e o
sofrimento chegaram. Aquele rapaz mantinha a pobre menina num cativeiro
afetivo. Tratava-a da pior maneira, mas, vitimada, ela desaprendeu a dizer "não".
Sem dizer "não", consentia uma espécie de invasão, uma
violência velada que tinha o poder de minar e fragilizar sua subje-tividade,
colocando-a novamente nas mãos de seu seqüestrador.
O medo de romper totalmente com o rapaz estava impedindo-a
de tomar a decisão certa para sua vida. Ela mesma não queria abrir as portas do
cativeiro. Preferiu reduzir a sua vida àquele espaço miserável que lhe era
oferecido.
Desprovida de amor próprio, resignou-se a viver como objeto de
prazer de seu seqúestrador. Perdeu de vista a sacralidade de sua condição
humana. Deixou de ser pessoa. Regrediu no processo. Renunciou a toda
autonomia, fruto da educação dada pelos seus pais. Preferiu perder sempre em
vez de perder de uma vez.
E estranho, mas essa menina é o retrato de uma realidade muito
comum entre nós. Sequestrados que aceitaram a condição de vítima; aprenderam
a perder sempre e não acreditam em alguma vitória reservada para eles. São
pessoas que se condicionaram ao fracasso e vivem retrocedendo ao invés de
avançar.
O rapaz teve acesso à totalidade daquela menina. Certamente
investigou suas fragilidades e fez questão de utilizá-las. Ela entregou tudo nas mãos
dele. Ele se apossou de sua subjetividade pela força do afeto e estabeleceu uma
dependência dela por ele. Instalou-se como um intruso. Rendida de amor, ela
aceitou o pouco que ele lhe dava, pois temia não sobreviver sem o seu amor de
precariedades.
Mediante ajuda terapêutica, a adolescente pôde retomar as rédeas
de sua vida e expulsar o rapaz e suas artimanhas ardilosas. Foi preciso enfrentar
o sofrimento agudo do rompimento para que ela reassumisse o amor próprio, e
só assim conseguisse sair do cativeiro.
Por meio deste caso, firmamos ainda mais nossa mmu çâo. Toda
relação humana necessita de cuidados, porque sempre transita nos limites ténues
entre amor e posse. Do amor à posse o caminho é curto. Basta que percamos o
foco de nossa identidade para que corramos o risco de alguém administrar nossa
vida, roubando-nos de nós mesmos.