Dias de Estrada (Parte 2)

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Nos tempos que eu trabalhava com transporte de crianças graves para os hospitais de Fortaleza, os horários eram os mais malucos possíveis. As vagas para os pacientes que aguardavam na Santa Casa de Misericórdia de Sobral eram disponibilizadas, em sua maioria, no período da tarde. Algo compreensível, visto que as visitas médicas destes hospitais ocorriam pela manhã e só após delas sabíamos se teríamos ou não alguma transferência.

O mais comum então era pegarmos a estrada no fim da tarde. O tempo para chegada na capital, enfrentar o trânsito da cidade grande, deixar o paciente devidamente acomodado e estarmos aptos para voltar poderia demorar até cinco horas. Então tínhamos que escolher locais estratégicos para, na volta, comermos algo, afinal somos humanos.

Havia, à margem da estrada, na cidade de Umirim, um destes restaurantes que fazem um maravilhoso café com leite e pão na chapa − me deu até fome agora −. Quase sempre, na volta, era sagrado uma paradinha de reabastecimento calórico. O dono nos conhecia e sempre nos preparava o pão com uma bela fatia de queijo coalho para fritar na chapa quente.

Eu tinha um Palmtop da marca Palm, um Tungsten E. Ele era incrível para aquela época. Tinha uma tela touch colorida e excelente resolução. Além disso, tinha infravermelho, igual aos controles remotos atuais. Isso possibilitava eu instalar programas que controlavam a frequência de modo que ele poderia simular vários modelos existentes no mercado, seja de televisores, equipamentos de som, receptores de parabólica e até de ar condicionados.

Em um destes dias, que estávamos retornando, paramos para manter a tradição. Naquela hora, que era entre 22h e 22h30m, várias pessoas estavam empolgadas com os últimos capítulos de uma novela global. Pareciam bem concentrados assistindo através de recepção por parabólica. Peguei meu palm e fiquei testando as frequências. Eu sabia que quando chegasse na certa a TV iria desligar. Em determinado momento... desligou.

As pessoas começaram a gritar, algumas pelo dono do estabelecimento outras pelo garçom. O atendente veio com um controle remoto em uma das mãos e tentou por várias vezes ligar sem sucesso. O coitado havia trazido o controle do receptor da parabólica e eu havia desligado a TV. Nunca iria funcionar daquele jeito.

− Acho que queimou pessoal. − disse o rapaz decepcionado. − Não está funcionando.

Quando ele havia desistido, pressionei i botão do tablete que acionaria ligar a TV. Voltou a funcionar. Todos gritaram de alegria. Neste momento Flávio, que estava atento a movimentação, olhou bem rápido para meu tablete e para a TV.

− Foi o senhor não foi doutor:

− Foi sim! − respondi sorrindo.

− Foi com este negocinho aí?

Acenei que sim com a cabeça e mostrei para ele o palm.

− O que é isso?

− É um palm. Uma espécie de pequeno computador. Ele executa alguns programas. Eu instalei um que controla ao infravermelho e o transforma em um controle remoto universal.

Lembrei que a primeira vez que testei desta forma foi na sala de espera de um consultório dentário. A TV estava desligada e eu entediado liguei como havia feito no restaurante. Haviam duas atendentes, as escutei cochichando algo que não entendi, mas pareciam assustadas. Não sei porque uma delas pegou o controle e voltou a desligar. Achei aquilo meio desagradável, afinal eu estava lá e elas poderiam perguntar o que eu preferia. Voltei então a ligar e simulei indiferença.

− "Vixe" Maria. − disse uma delas. − Foi tu?

− Eu não!

− Deixa de brincadeira! Isso não tem graça.

− Eu já disse que não foi eu!

Ela veio um tanto assustada e tirou o plugue da TV da tomada. Acabei tendo que esperar em silêncio.

Quem disse que médico não apronta ou se diverte?    

***

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⏰ Last updated: Jul 09, 2017 ⏰

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Memórias de um Médico no SertãoWhere stories live. Discover now