No canto da sala, um homem está sentado largadamente em uma antiga poltrona. Seus braços estão apoiados e ele olha perdidamente para frente. A sala é ampla e cheira a madeira antiga. As paredes estão cobertas de quadros, objetos e livros que com certeza fariam a alegria de qualquer museu no mundo. Mesmo à meia luz é possível perceber que o homem é jovem, não aparenta ter mais do que 30 anos, porém seus olhos fundos carregam séculos de existência. Sua pele é morena, queimada pelo sol e seus cabelos, negros e curtos.
A seu lado, em uma pequena mesa, repousam um copo com gelo e uma bebida acobreada que lembra uísque e um revolver. Aparentemente eles estão ali faz algum tempo e o homem não faz qualquer menção de pega-los, nem de olha-los.
E ele pensa. Pensa que hoje é um dia diferente. Lembra-se de quando tudo isto começou há muito, muito tempo atrás, muito antes do que qualquer pessoa pode imaginar, muito antes de tudo aquilo que existe hoje, muito antes do que contam os livros de história.
Quando isto tudo começou nada era como hoje, absolutamente nada. As pessoas eram diferentes, falavam línguas que nem existem mais e que não são pronunciadas nesta terra há incontáveis gerações.
O lugar também não existe mais, jaz agora sobre camadas e camadas de terra e pedras em algum lugar do que hoje conhecemos como Hungria. Ou será Bulgária, ele sempre se confunde. Que seja, o que importa é que não existe mais traço algum daquilo que um dia ele chamou de lar, assim como cada átomo dos ossos de seus pais e irmão já não fazem mais parte deste mundo.
Porém, mesmo que a memória rareie pelo excesso de informações, e a linha do tempo da sua vida o confunda, aquele dia em especial ele não esquece, lembra cada detalhe. Lembra-se como convocou aquela deusa. Ou demônio, como se dizem agora, pois naquela época não havia esta dualidade, os deuses eram bons e maus ao mesmo tempo.
Lembra-se como disse que queria a imortalidade, e de como ela aceitou lhe dar, com condições, claro. Deuses sempre exigiam condições, este era o problema de lidar com eles e estas condições, a médio e longo prazo, sempre eram danosas, mas, quem disse que pessoas que convocam deuses estão preocupadas com o longo prazo?
Ele ganhou a imortalidade que pediu e a condição foi simples: quando ele desistisse desta imortalidade, a alma dele seria dela, por mais uma imortalidade.
Claro, desistir da imortalidade é uma hipótese, senão para que serviria a condição imposta? Ele se lembra de também ter dito para ela que jamais desistiria, mas as palavras dela até hoje permanecem na sua cabeça: "todos um dia desistem da imortalidade. Viver para sempre cansa".
E uma vez a cada cem ciclos da Terra em torno do Sol, durante um ciclo lunar, quando a Lua se aproximar o máximo do planeta, ele se torna mortal novamente. Durante este dia, que é como se chama este ciclo hoje, ele pode sangrar e morrer. Fora isto, durante todo o resto do tempo, ele é imune a qualquer coisa que possa lhe matar.
Um dia a cada cem anos, é exatamente isto. Durante e apenas um dia por século ele pode morrer. Durante este dia ele pode desistir da sua imortalidade e se entregar ao seu destino, outra imortalidade que ele não poderá cessar.
Acontece que, depois de tanto tempo, ele nem sabe mais se essa deusa ainda existe. Não há registro algum de sua existência, de seu culto, e nem seu nome consegue ser pronunciado pelas línguas atuais, após o tempo que passou. Será que, ele pensa, após tanto tempo, resta alguém para vir buscar a sua alma? Ou ele está esquecido neste lugar?
Sentado na confortável poltrona encapada por ele mesmo usando o couro de um animal já extinto, o homem sabe que aquele dia é hoje. Aquele dia em que ele pode escolher viver por mais cem anos ou finalmente morrer.
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WHO WANTS TO LIVE FOREVER
Short StoryE se vc pudesse ter a chance de viver para sempre, até quando aguentaria?