SAUDADES DA FILHA AMADA

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“Saudades da filha amada que este lugar elegeu para sua morada.”

Tudo começou aqui na boa e velha cidade maravilhosa. Nas entranhas de um esquecido cemitério, em uma noite bem atípica deste lugar cálido, onde minha história se permeia. Era uma noitinha gélida, oriunda de um dia cinzento. O dia perfeito para acabar algo, ou tudo.

Passei com vagareza entre quadras e lotes, deslizando pelo jardim dos esquecidos. Eu tinha menos vida que aquele lugar. Já estava tão atormentada, que julgava que os passos que ouvia eram coisa da minha cabeça. Vultos, vozes e ecos dos meus constantes remorsos, ledo engano.

Caminhei bastante e ao pé de um enorme e majestoso flamboyant escolhi o lugar, me sentei no mármore já de cor baça, dedilhei a coroa de flores do meu futuro vizinho e até apreciei o perfume passado das flores. A luz fraca da lua me permitiu ler o epitáfio ao lado: “De todos os gostos da vida, o maior desgosto foi perde-la”. Nossa, Leonardo. Você era muito piegas.

Contudo, ler isso me lembrou de deixar meu epitáfio na minha carta de despedida. Fiz as devidas correções na carta e comecei meu ritual. Balbuciei algumas coisas que vieram na cabeça, choraminguei o que podia o tempo que quis, preparei meu vinho barato com um famoso mata-ratos. Ergui a garrafa, respirei, me despedi da última lágrima e bebi. Simples assim.
Em um segundo, a tonteira, a fraqueza e aquele monte de remorsos. Sonhos mortos, um dia quente de praia, a lembrança de um beijo em particular.

Tudo isso me passou pelas vistas e por fim a leveza da gravidade, que foi me arremessando ao encontro do mármore. Antes mesmo de fechar os olhos de vez, um vulto abrupto em um supetão segurou meu rosto antes de cair ao solo. Firmei a visão e esquadrinhei o rosto branco e suave, com lábios rubis de uma velha senhora, que com seus olhos negros sepulcro e de postura severa me apararam. Mata e seca. Disse o camelô. Ela só podia ser uma das freiras mantenedoras desse lugar. Pensei eu.

Me desvencilhei do abraço caridoso da senhora. Levantei em um pulo e tentei inventar um motivo para estar ali aquela hora. Ela no que lhe diz respeito nem reação esboçou, solene apenas abriu seus lábios e sussurrou.

― Você não deveria estar aqui. ― Tentei começar com: “eu sei, mas… ” Fui interrompida.

―, Mas já que está, é hora de conhecer devidamente o local e as pessoas. ― Pessoas! Que pessoas? Pensei.

Um segundo atrás não havia viva alma por quilômetros. Contudo, caminhando com ela pude perceber que o lugar estava realmente bem cheio. Mulheres sentadas em mausoléus, crianças correndo pelas quadras, homens conversando e até cantando. Alguns sozinhos andando perto das gavetas. Até um padre vi perto do cruzeiro.

O lugar agora parecia cheio de vida. Só parecia. Não demorou muito para eu entender que aquilo era tudo que elas não tinham mais. Eram versões translúcidas do que foram em outrora. Lampejos de pessoas e suas histórias, alguns de brilho tão fraco que mal se podia perceber sua existência.

A velha senhora caminhava impávida entre aquilo tudo, indiferente a todos. Parecia me conduzir entre eles. Até um dos solitários mais afastado ela me levou. Só quando paramos bem perto do vulto soturno e inquieto, a sombria madame voltou a sussurrar.

― Carlos sempre foi um bom marido e pai, exímio profissional. Cortez, polido e educado. Bom filho também. O tipo de pessoa que inspira confiança, como um velho motorista de ônibus escolar. Mas as sextas, ele descia nos becos escuros e o seu dinheiro suado ficava sujo. Ele pagava para homens tão baixos como ele, trazerem meninas ou meninos, sempre da idade dos seus filhos ou até mais novos e iniciava sua transformação. ― Seu semblante ficou mortiço.

― Retirava seu terno de risca, pintava sua boca com um Batom roxo pavoroso, colocava suas luvas de couro negro e finalmente os amarrava, queimava de cigarro, batia um pouco, bebia vodca nos seus corpos e enfiava coisas aonde elas cabiam ou onde ele queria que coubessem.

Filha Amada (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora