texto numero 1

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Parece que o mundo todo sabia que tudo ia acabar naquela noite.

Eu peguei o último ônibus que estava no ponto, e não tinha ninguém nele. E isso foi bom, porque eu precisava de bastante espaço pra os meus pensamentos se alojarem. Enquanto eu olhava pro asfalto meio embaçado por causa da chuva que caiu de tarde, o jeito que o vento frio batia no meu rosto me alertou que dessa vez, tudo seria diferente. E o meu maior erro foi ter ignorado completamente isso.

O dia já tinha chegado ao fim, e quando as cores do céu já estavam mudando de laranja pra preto, eu subia a escadaria em cima de uma névoa de pensamentos que estava quase me sufocando.

Enquanto meus pés se arrastavam pra dar aqueles dez passos até a porta (parece eles já sabiam que tudo ia acabar também) eu tentava, com a minha fraca memória, lembrar de todos os detalhes ao meu redor.

Assim que eu entrei, nós desmanchamos naquela cama encharcada com os meus sentimentos (depois ela tentou tirar aquela quantidade de água dela, espremendo-a cada fez mais forte) eu escutava ela falar, e falar, e falar, e não dizer absolutamente nada.

Nossos rostos estavam perto ao ponto de eu conseguir sentir sua respiração mover os meus cílios, como uma brisa de final de tarde. E eu consigo lembrar que doía olhar pra ela. Essa é a minha lembrança mais clara, que me assombra quando eu acordo sozinho e completamente vazio todos os dias às 5 horas da manhã.

Quando a dor começou a ficar mais aguda, ela tossiu as seguintes palavras:

- O que você tá fazendo? - disse ela, penetrando de súbito em meus pensamentos.

- Lembrando disso tudo. - disse eu, vagarosamente.

Logo depois disso ela pegou as minhas palavras (que eram tão leves quanto uma pena) e jogou elas pro lado. Depois ela usou uns pedacinhos de mim que estavam espalhados pela cama encharcada. Quando ela acabou, empurrou esses pedacinhos pro lado e disse para o que restou de mim que talvez era hora de eu ir embora.

E então, eu fui. Mas no longo caminho que eu percorri, tive que ir engatinhando, porque nesse ponto as minhas pernas já não funcionavam mais.

Meses depois, eu consegui chegar em casa. Procurei no meu corpo físico todo por marcas, mas não achei nenhuma. Então, eu pensei em procurar por marcas na alma, mas o meu medo não permitiu, então eu decidi parar de procurar, fazer as malas  fugir disso tudo.

Eu estava colocando a ultima peça de roupa na mochila, quando uma luz surgiu. Primeiro eu achava que era a luz do sol,  que eu sempre via nos olhos dela. Mas na realidade era a luz de um celular, me forçando a ler todas aquelas coisas que eu já sabia, mas não queria ver de jeito nenhum.

Merda, não consegui fugir a tempo.

Demorei mais alguns meses pra ter coragem ler todas aquelas palavras, porque eu sabia que, no momento que eu chegasse ao ponto final, tudo aquilo que eu achava que eu tinha não estaria mais ali. Eu ia perder tudo. De novo.

Quando eu finalmente cheguei ao fim, tive que quebrar todos os meus espelhos, pra não me assustar com o meu corpo todo arranhado por conta das navalhas que ela cuspiu em cima de mim. Os espelhos estão quebrados até hoje, e agora eu não faço mais ideia de como é minha aparência.

Eu esqueci de mim.

Mas eu não faço a menor ideia de como que eu vou esquecer dela.

Textos para elaOnde histórias criam vida. Descubra agora