Que defeito?

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          Em uma grande cidade, cheia de pessoas, nasceu um pequeno filhote. Era um cachorrinho pequeno, sua pelagem era marrom e curta, seus olhos pareciam duas bolas de gude pretas, e ele estava sempre agitado. Esse filhote não conhecia a cidade grande, não sabia quantas pessoas haviam além da janela que dava para a rua. Tudo o que ele conhecia eram seus irmãos igualmente agitados, a mãe que lhe provia o leite, e grades ao seu redor. O filhote não nascera livre, mas ele não sabia o que era liberdade, então não se importou.

          Dias se passaram e o filhote percebeu que existiam criaturas diferente dos irmãos e de sua mãe, essas criaturas de pernas longas apareciam de vez em quando para raptar um de seus irmãos, que voltavam com os rabos caídos e gemendo baixinho. Até que um dia fora sua vez, o filhote sentiu o calor das mãos das criaturas, e um cheiro bom na sua pele, mas logo se viu sentado em uma mesa de metal fria, sozinho. Ele não entendia o que as criaturas conversavam, e mesmo que latisse pra eles pedindo atenção e respostas, eles pareciam o ignorar.

          Quando a criatura que o pegara voltou, trazia um objeto pontudo consigo. O filhote tentou se esquivar, mas não havia para onde correr. A mão voltou a segurá-lo e ele sentiu a pontada em sua coxa traseira, ganindo ele tentou mostrar que machucava, mas a criatura não parecia se importar. Foram minutos de picadas e dores, e logo ele havia sido trazido de volta para seus irmãos. Agora ele entendia porque todos voltavam tristonhos.

          Mais alguns dias se passaram, e sua mãe não mais estava ali para lhe dar o leite desejado, em seu lugar agora haviam vasilhas que as criaturas enchiam com um leite ruim e amargo, mas ele estava sempre faminto. Era com dificuldade que ele se metia entre os irmãos e tomava o leite estranho. Alguns dias depois havia mais coisas estranhas sendo dadas a eles, eram bolinhas que tinham um sabor salgado, ele também tinha dificuldade de mastigá-las, mas quando as criaturas pararam de lhes dar leite, era só o que sobrara.

          O dia mais interessante foi quando eles foram para um lugar claro e aberto, ele podia ver um espaço gigante ao seu redor, havia varias coisas de tamanhos e formatos diferentes, haviam outros tipos de cachorros como ele, gordos e magros, altos e baixos, pelos curto e pelos longos, eles entravam junto de outras criaturas, também de diversos tamanhos, e saíam logo em seguida. Às vezes as criaturas menores vinham brincar com ele e seus irmãos. Elas mexiam os dedos e pareciam sorrir, e ele tentava sempre pular nas grades e tentar alcançar seus dedos, mas seus irmãos ganhavam dele.

         Então seus irmãos começaram a ir embora. Um a um eles eram levados pela criaturas e não mais voltavam. Agora ele tinha mais espaço pra dormir, sem precisar se espremer entre um e outro, e mais chance de comer as bolas duras e salgadas, mas também se sentia mais sozinho. As criaturas vinham, apontavam para seus irmãos, e então eles eram levados. Ninguém apontava para o filhote dos olhos de bolinha de gude.

          O filhote começou a sentir frio quando finalmente ficou sozinho. As criaturas o colocaram em um espaço pequeno, ele mal conseguia andar, mas andar também começara a cansá-lo, então era até bom. Só saía daquele lugar quando o levavam para jogarem água nele, e passarem uma coisa que deixava seu pelo branco e cheio de bolhinhas, e então jogavam água novamente, e colocavam vento diretamente sobre seu pelo. Ele sentia frio, mas as criaturas não ligavam, e quando as coisas que arranhavam sua pele não se enganchavam em seus pelos, ele também não ligava. Descobrira que gostava de sentir as mãos das criaturas passando pelo seu corpo, o deixavam feliz.

          Dias passavam, as criaturas pequenas passavam por ele, o olhavam mas nunca apontavam, e ele nunca era levado para o lugar desconhecido. O filhote nunca vira o seu reflexo e por isso não sabia que era diferente. Ele não sabia que, quando as crianças que passavam olhavam para ele, viam seu corpo magro quase se arrastar para cumprimentá-las, tinham pena, mas não o queriam para elas. Ele não tinha percebido que desde que nascera suas perninhas tinham enfraquecido, ou que não mais pulava como antes, ou que não comia quase nada. 

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