Tinha três quartos, uma salinha jeitosa, uma cozinha prática, um banheiro razoável e uma sala de jantar que deixava a desejar. O apartamento, claro. Tínhamos comprado ele há pelo menos um mês quando tudo aconteceu. Tudo o quê? Ah, eu acho que não expliquei. Provavelmente é nervosismo... Coisa de principiante. Não sei bem o que dizer sobre "tudo o que aconteceu", mas digamos que mudou minha perspectiva.
Um mês, foi o que disse? Bem, deve ter sido isso. Tínhamos comprado o apartamento na Rua Vereda há um mês quando recebemos a visita tão ilustre de nossa vizinha, Dona Mocinha. Era uma senhorinha, uns setenta anos, mas totalmente lúcida. Um amor de pessoa... Acho que já deve ter morrido. Ou se mudado. Mas isso é totalmente dispensável, veja bem...
Eu chamei Dona Mocinha para entrar, é claro, sou uma dona de casa bastante educada. Servi-lhe cafezinho coado e uma fatia de bolo de fubá que eu tinha feito no dia anterior. Sentei-me ao seu lado em nosso sofá e conversamos sobre... Amenidades. Pelo menos eram amenidades até certo ponto da conversa.
- Daqui consigo vê-lo com clareza... – devaneou Dona Mocinha depois de um daqueles períodos de silêncio constrangedor. – É uma janela muito grande, essa.
- É sim, Dona Mocinha. – respondi-lhe. Estava confusa, então fui em frente: - O que é tão claro visto daqui?
Ela olhou-me com espanto. Senti-me louca perante aqueles olhos julgadores, sendo que fiz apenas uma pergunta. Hoje, depois dos eventos, sei o que Dona Mocinha pensava em seu devaneio... Veja bem, eu era quase uma completa ignorante. Acho que ainda sou... Desculpe. Vamos voltar à história.
- O prédio. – Dona Mocinha estendeu o dedo ossudo em direção ao edifício vizinho, um prédio baixo e cinzento, com certeza em pior estado em relação ao nosso. – Esse prédio.
Eu fiquei confusa.
- O que há demais nele, Dona Mocinha? – pergunto, recebendo uma face espantada para mim.
- Então ninguém lhe avisou sobre o prédio... – ela parecia espantada. Culpada? Não, embasbacada. É essa a palavra, eu acho. Hoje eu sei que qualquer bom vizinho teria me avisado sobre o prédio, mas na época achei um drama... Desnecessário. – Eu então tenho um dever moral com a senhora e devo dizer-lhe o que há no nosso prédio vizinho...
E ela contou-me tudo. Tudo o quê? Bem, como o prédio era cheio de pessoas devassas. Drogados, prostitutas, bandidos da pior espécie. Vários dos meus antigos vizinhos perderam os próprios filhos para aquele prédio. E ela me alertou sobre meu filho – na época devia ter dezesseis... – e como eu não podia chegar perto do tal prédio. Devia até evitar vê-lo. Parecia haver uma maldição sobre aquele concreto miserável, e eu fiquei espantada. Queria levantar-me, fechar as cortinas para aquele mundo sujo e desconhecido.
É natural, não é mesmo? Termos medo. Como eu tive, naquela manhã com Dona Mocinha. Ela foi embora depois de contar tudo isso. Com xícara de café e pedacinho de bolo. Depois devolvia a louça, lavada e seca. Acha que vi? Espero estar enfeitando seu armário de louças no céu – ou na nova casa. Às vezes me pego mórbida, veja bem...
Se isso foi tudo? Não. É só o prólogo – ou a introdução? Eu não sei nada desses termos técnicos. Voltando à história: passaram-se várias semanas e eu me pegava, todos os dias, pensando nos males do prédio vizinho. Meu filho, que já saía pouco, não tinha a autorização de pisar naquele prédio com ameaças severas. As cortinas passavam quase todas as horas do dia fechadas e as luzes eram acesas – pobre marido... Pagou contas tão altas naquelas semanas. Só que quanto mais eu fechava, mas eram as espiadas por frestas. Quanto mais pensava nos males, mais ficava tentada a visitar o prédio e ver com mês próprios olhos. Se eu duvidava da palavra de minha velha vizinha? Nunca. Mas havia algo em mim, que não sou capaz de entender, que me atraía, como um ímã, àquele bloco amaldiçoado de concreto velho.
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Randomuma coletânea de contos e textos escritos por antonio júnior, de tema livre e sem frequência específica ou continuidade: cada conto tem seu universo particular e sua história independente.