II

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- Agora vai fazer com que me sinta culpada.

-Talvez.

"Talvez". Ótimo. É tudo que ele diz. Acabei de sair de um quarto pra ficar presa em outro. Pelos Deuses, que ele não seja um contrabandista de órgãos. Seria melhor se eu não dormir hoje, lido com minha dor de estômago depois. Mas com certeza não vou dar trela pra esse cara. Já tô me arrependendo de ficar, mas ele tem razão. Droga de falta de segurança nesse país. Droga de chuva. Droga de vida.

-Em?

-O que?

-Quer descansar? Não me importo em dormir no chão. Na verdade não planjo dormir. 

-Não vou conseguir dormir, a cama é sua. Além do mais, você pagou o quarto.

- Mas eu não vou dormir. 

-Se não vai dormir,  que pensa em fazer então?

-Trabalhar. A senhorita observadora não viu meu computador porque ele estava debaixo da cama carregando, enquanto eu tentava organizar minhas coisas. 

Que maravilha, vou ficar com um teimoso. Vai ser uma longa noite para nós dois. Como pode, um homem como ele acabar num quarto de motel e trabalhar. Quer dizer, eu não acreditava nisso. Ainda achava que tinha atrapalhado seus planos. Talvez ele fosse pedir uma meretriz. Ou um cara. 

-Mil perdões por essa falha, senhor. Prometa que não vai me dedurar pra CIA?!

-Deixemos essa passar.

-Trabalha em quê?

-Já pulamos a parte de apresentações, não acha?

-Me obrigou a ficar aqui com você, nenhum de nós pensa em dormir, o mínimo que podemos fazer é ter algum diálogo, não acha?

-Faço a contabilidade pra uma empresa nova de móveis. Abriram algumas lojas  por aqui e me chamaram pra ver uma papelada, conferir os dados, coisas..

-Chatice  de exatas, é entendi.

Ele se sentou na poltrona, pôs o notebook no colo e a garrafa de água no chão. Amy acabou por perceber que nem ao menos sabia o nome dele. Detestava mas tinha de admitir, ele era encantador, ombros largos, cabelos negros, uma voz que capaz de fazer a gente se perder nos próprios pensamentos e tinha de fazer um imenso esforço e se concentrar e não se enrolar nas palavras.

- Vai ficar me encarando a noite toda?

- Não sei seu nome ainda.

-Achei que não se importava com isso. É Sam.

-Diminutivo de...?

- Só Sam. 

- Prazer Sam. Meu nome é Amy, mas isso você já sabia.

-Uhum.

- Mora longe daqui?

- Uhum. 

- Ok, sem conversa então.

- Agradeço.

Babaca. De qualquer forma, iria me ocupar também. Tirei de minha bolsa o kindle e o telefone, duas coisas que  levava pra qualquer lugar que fosse, mas nem acreditava que naquela noite acabaria lendo em uma cama de motel. Constavam 12 chamadas perdidas de Daniel no celular, me surpreendi até, agradeci a mim mesma por ter deixado no silencioso. Escolhi um dos livros, "Girl, Interrupted." Já li umas cinco vezes, era meu livro favorito, me sentia uma amiga íntima de Suzanna, mas não sabia se isso era algo bom ou ruim, levando em consideração a história.

Depois de alguns minutos, que pareciam eternos, mas no relógio mostrava que não foram nem vinte, ouvi Sam resmungar alguma coisa, não entendi o que disse. Preferi ficar quieta sem me intrometer. Sempre fui curiosa, no entanto, hoje a curiosidade me fez sair correndo. De volta a leitura, tinha o costume de a cada capítulo terminado refletir sobre o que acabei de ler, mas sendo tão expressiva como sou, com certeza estava fazendo alguma careta engraçada que fez Sam notar.

-O que está lendo?

-Pensei que não queria conversa.

-Não quero, mas neste exato momento seus devaneios me parecem mais interessantes do que planilhas. Além do mais a internet aqui é horrível.

-As pessoas vêm pra esse lugar transar, não usar a internet.

-Brilhante observação srta. "obvious".

- "Garota, Interrompida". Não acho que conheça, é uma história sobre...

-Ah sim, já vi o filme. Tem a Angelina Joeli no elenco, uma sociopata. Bom filme.

-Bom, o filme é até bem condizente com o livro, mas a maior parte das informações...

-Já sei, você é daquelas que abominam adaptações e prefere obras originais. Compreendo. Queria ter mais tempo pra ler, mas filmes são mais dinâmicos e baratos.

-Queria?

-Sim.

-Se quer, consegue arranjar tempo, nem que seja um capítulo por dia, ou noite, antes de dormir. E quanto ao custo, e-books são ótimas opções. Confesso que prefiro livros físicos.

-Gosta de ler sobre o que?

-Sobre tudo. Na verdade são poucos os gêneros que eu não leio. Guerra, livros que contam sobre épocas como o nazismo. Também não sou muito adepta a política, ou livros sobre animais que provavelmente vão morrer no final da história.

- Interessante.

-E quais são seus tipos de filmes?

-Ação, aventuram ficção, terror, comédia, documentário, essas coisas.

- Pera, eu ouvi direito? Comédia? Você é capaz de rir?

-Por que pensou o contrário?

-Você é sério. Me parece que vai esmurrar a cara de alguém a qualquer momento.

Ele deu um pequeno sorriso com o canto da boca.

- A noite não acabou ainda. E quanto minha cara de bravo, admito, mas sou controlado. Só parto pra violência se houver necessidade.

-Violência nunca é necessidade.

- Você é budista, ou algo assim?

- Não, mas poderia ser. Já conheceu algum?

-Nunca.

-Eu já. Estão em toda parte. São as pessoas mais cativantes que conheci. Você nunca se esquece deles. Mas, respondendo sua pergunta, sou pacifista. Não apoio violência, nem contra humanos, nem com animais e a natureza.

-Encantador. Acha que vai conseguir mudar o mundo?

-Sozinha? Não. Mas a minha parte eu faço. Por mim, e por vocês, humanos.

Voltei a ler, ele a olhar para o computador, com o canto dos olhos percebi quando ele sorriu. 

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