Sincericídio

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Engoli aquele comprimido vermelho com goladas de água sob a observação da minha mãe.

— Que remédio é esse, Alice?

— Aquele representante magrinho esteve hoje na clínica. É um lançamento! Corta o efeito do álcool no organismo. Parece que só deixa aquela sensação de corpo levinho. É melhor eu não correr o risco de ficar bêbada nessa festa.

Nós sabíamos que eu não tenho resistência ao álcool. O mais sensato seria não beber, mas já que ganhei esse comprimido milagroso, não precisava me privar das borbulhas gostosas do espumante. Observei o único convitinho entre os meus dedos. Minha mãe, como sempre, tentou traduzir minha angústia:

— Ainda cismada por ir desacompanhada? Você conhece a todos!Passou mais de 15 anos de sua vida com eles. Com certeza terão outros divorciados.    

— Infelizmente mãe, nesse tipo de festa há duas coisas que importam: aparência e status de relacionamento. — Desviei o olhar até meu pequeno Henrique e o abracei.

Havia outros divorciados e solteiros. Nessa era das redes sociais, ficou fácil saber tudo sobre a vida de todos. Pelo menos sabíamos o que queriam que soubéssemos. Dentro do táxi, verifiquei a maquiagem, as ruguinhas ao redor dos olhos e as manchas cobertas pelas camadas de base e pó. Todos estariam mascarados, buscando a alegria perdida no passado e escondendo as tristezas atuais. E isso me fez pensar em Guilherme.

O táxi parou no portão que dá acesso às quadras do colégio, era estranhamente nostálgica a ideia de reproduzir a nossa festa de formatura. Reconheci Marina, uma antiga amiga, que me aguardava com o marido.

— Uau Alice! Com corpinho de quinze anos depois de ter um filho? Como você consegue?

— Experimenta se divorciar com um filho pequeno, mudar de cidade, voltar a morar na casa da mãe e vai descobrir a fórmula mágica para a magreza...

O sorriso dela se encolheu. E o meu, nervosamente, se expandiu, na tentativa de amenizar a enxurrada de franqueza. A verdade é que nesse tipo de reunião, as conversas devem girar em torno de amenidades e boas lembranças.

— E você! — Segurei suas mãos sorrindo. — Está linda! 

    Tensão desfeita, podíamos brincar de ter 17 anos ao entrar na festa, cheias de expectativas para o momento e para o imenso futuro que se abriria a partir dali. Mas a primeira visão da festa foi vertiginosa. Havia uma agitação estranha, todos trocavam abraços apertados, com lábios trêmulos de tanto sorrir, olhos marejados e espalhando aos quatro cantos elogios infindáveis.    

Então, eu o vi chegar. Guilherme entrou no salão usando um terno cinza sem gravata. Os ex-rapazes se reuniram em torno dele, cantando o hino do time tricampeão da interclasse do ano 2000. Às vezes eu acredito que só foi possível reconhecê-lo atrás daquela espessa barba castanha, porque vi sua foto de perfil no grupo da turma no Facebook. Eu desviei meu olhar e Marina reparou, mas não disse nada. Há 15 anos ela teria espremido o sorriso e sussurrado: "está apaixonadinha!", no meu ouvido.

Guilherme esgotou as brincadeiras entre os amigos e caminhou na direção do grupo em que eu estava. Havia tantas pessoas a cumprimentar antes de chegar até mim, que nem seu olhar foi capaz de se adiantar, a mesma confusão de abraços e emoções intermináveis. Quando ele se deparou comigo, foi realmente um susto. Ele puxou o ar, abriu os olhos e tombou levemente a cabeça.

— Oi Guiga. — Eu acho que o imitei por instinto. — Você está me reconhecendo, não é?

— Claro que sim, Alice... — Ele abriu lentamente um sorriso que me fez voltar uma década e meia no tempo. Era a mesma doçura pela qual me apaixonei.

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