IV

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O som que a criatura faz é pior do que realmente deveria ser, ela está faminta e sabe que sua morte se aproxima. Ela ronda novamente na frente da caverna e eu tento a todo custo respirar em silêncio.

Meu corpo está paralisado e o Forasteiro parece preocupado, à noite ainda não acabou e parece que o sol não vai voltar tão cedo.

Penso no que vou encontrar quando chegar em Solarium, nos quatro anos em que ando pelo deserto ouvi vários rumores em que cidades estavam sendo reconstruídas e pelo que sei há somente cinco cidades em pé, Solarium e Gaston, são duas das cidades sendo construídas, mas elas são as mais avançadas em comparação as outras.

Solarium foi a primeira cidade a se erguer nesse enorme deserto e em seguida veio Gaston. A primeira cidade constitui de matérias-primas em abundância, como ouro e diamantes, pois a cidade é perto de montanhas. Enquanto Gaston possui uma vasta quantidade de água e partes onde a terra é fértil, não que seja muito grande as plantações, mas dá para alimentar os sobreviventes e é isso que importa. As outras três cidades nunca ouvi falar de seus nomes, muito menos sobre elas, o que me deixa confusa.

Um grunhido alto me faz voltar de meus pensamentos, olho para a enorme pedra que tampa a entrada e ouço algumas fungadas, como se estivesse sentindo o cheiro do local. Olho para o Forasteiro - que até agora não me importei de saber o nome - , e ele também me olha apreensivo, sua mão desce até sua espada curta e mira seu olhar na entrada.

Aproveito o momento para explorar seu rosto, o sheema que deixei para ele está amarrado em volta de seu pescoço, pronto para ser colocado ao rosto quando precisar. Suas sobrancelhas estão levemente arqueadas uma contra a outra, seus olhos estão sem expressão e a boca está em uma linha fina, como se a situação não o lhe agradasse. Tento ver seu cabelo, mas é inútil, seu capuz o tampa completamente.

Se eu não estivesse ligada à ele, com certeza ficaria intimidada, não só pelo seu tamanho, mas também pela sua expressão facial. Quando ele volta seu olhar para mim, eu viro a cabeça para a direção da entrada, sinto minhas bochechas queimares e agradeço por estar com meu sheema.

A criatura da noite parece desistir, pois não à qualquer barulho do lado de fora. Um vento frio vem da extensão da caverna, olho por um momento a escuridão e logo retiro a ideia de minha mente, não seria seguro sair explorando o resto da caverna. Pode ter alguma criatura esperando no fim do caminho ou quem sabe algo pior.

O Forasteiro se levanta e volta a aumentar o fogo, olho para as chamas, mas meus olhos logo voltam a prestar atenção nele. O avalio e mais uma vez tenho a certeza que ele não é daqui.

— O que veio fazer no deserto? — A pergunta escapa de meus lábios.

Ele ergue o olhar e sinto o desconforto emanar dele.

— Preciso chegar em Solarium e pelo que eu me lembre, ela ainda fica no deserto. — Ele diz.

— Solarium fica ao Norte e você está bem longe do caminho — Digo desconfiada. — O que veio fazer ao leste do deserto?

— Isso não é da sua conta. — Ele diz irritada com minha intromissão.

— É, talvez não seja, bom, não me importo. — Me levanto sentindo a facada de minhas costas arder.

Vou até ele e ignoro seus olhos curiosos, quando chego até ele, lhe lanço um olhar antes de ir para suas costas.

— O que está fazendo? — Ele pergunta  olhando por cima dos ombros.

— Preciso que você tire a parte de cima de sua roupa. — Digo olhando para o buraco no couro.

— Pra quê? — Sinto a confusão emanar dele.

— Seu ferimento, vou cuidar dele. — Digo, vejo ele assentir com a cabeça e começa a desamarrar os cordões.

Me afasto um pouco e o olho desamarrar e abrir todos os fechos de sua roupa.

— Você diz isso para todos o homens que você fere? — Ele pergunta erguendo uma sobrancelha.

— Não, somente à aqueles que me afetam fisicamente, o que é o seu caso. — Digo dando de ombros.

Ele fica pensativo e parece que vai dizer algo, mas ele muda de ideia. Ele joga sua roupa perto de seus pés e me olha, indico para ele se sentar e ele o faz sem me contrariar. Me ajoelho atrás dele e me sento sobre os meus pés.

A ferida parece estar começando a infeccionar, levo minha mão até a cintura dele e pego seu cantil, abro a tampa e jogo um pouco de água na ferida para limpa-la, por baixo de meu corpete rasgo um pedaço de minha blusa e jogo água no pano. Limpo sua ferida o máximo que posso sem machuca-lo ou causar muita dor.

Sinto meu corpo relaxar ao tocar sua pele, mesmo que seja sem querer, olho ao redor sem ter certeza o que eu devo fazer, se eu deixar a ferida como está pode acabar ficando pior, o que é muito ruim. Suspiro sem qualquer outra alternativa coloco uma mão em cima da outra sobre a ferida, ouço um grunhido vir do Forasteiro.

— O que você está fazendo? — Ele pergunta.

— Fique quieto. — Digo irritada.

Me concentro em meu interior, busco dentro de mim o que quero que aconteça, no meu peito algo se agita e começa a me esquentar de dentro pra fora, concentro todo o poder em minhas mãos, trazendo-o em direção delas, não sei quando fechei os olhos, mas os abro rapidamente vendo minhas mãos brilharem no tom prata, a paz enche meu interior e chego a engasgar pela sensação, aguento por alguns segundos até sentir apenas a pele cicatrizada sobre minha mão.

O brilho diminui e me afasto do homem à minha frente, a cor em minhas mãos ainda não sumiram e ela começa a se espalhar pelo meu corpo, isso significa que meu corpo precisa ser curado, não só das feridas, mas também da sede e da fome. Os olhos do Forasteiro se encontram com os meus, a ligação entre nós está se tornando mais forte a cada instante e começo a sentir cada uma de suas emoções ao mesmo tempo, meus pés vão para trás no automático. A paz se torna em uma queimação na pele e isso é ruim, quer dizer que estou chegando ao meu limite.

— Me atinja. — Sussurro perdendo qualquer controle do meu poder.

O Forasteiro se levanta e vem em minha direção.

— O que disse? — Pergunta assustado.

— Me atinja. — Repito um pouco mais alto.

— Não vou machuca-la. — Ele dá um passo para frente.

— Me atinja, agora.

A queimação piora e um grito sai pela minha garganta, a mesma arde e sei que estou queimando de dentro para fora, não devia ter chamado meu poder, eu sou teimosa em usa-lo mesmo sabendo que não sei controla-lo exatamente.

Em um último ato de controle, pego a espada curta do cinto do Forasteiro e a finco em meu coração. Ouço ele gritar alguma coisa e meu corpo cai, à paz volta a se apossar de meu interior e nada mais queima. Meus olhos encontram os dele e não deixo de sorrir.

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