".....e eis que se levantou da sepultura, dirigiu-se a ele e, friamente, enfiou-lhe a mão no peito, arrancando o coração ainda pulsante e quente....." - "Magnífico! Espetacular! Você tem um grande futuro como escritor". "Continue no caminho". "O gênero terror encontrou um substituto à altura de Stephen King e Edgar Allan Poe".
Este era o comentário que Jairo sempre ouvia quando lançava algum novo conto, livro ou qualquer coisa que escrevesse. Ele, aos vinte e sete anos, já tinha conquistado uma razoável independência financeira com suas aventuras literárias. E ainda não havia saído da casa de seus pais. Era o que se chamava "filhinho de papai". Nunca precisou trocar um botijão de gás nem cortar a grama, suas delicadas mãos nunca pegaram uma enxada ou coisa parecida. Sua vida sempre se resumiu a carros, sucesso, mulheres e nada para fazer. Um bon vivant. Mas ao contrário do que possa parecer, não era arrogante, nem tampouco de má índole, daqueles que queimam mendigo dormindo em parada de ônibus. Era uma pessoa boa e muito inteligente. Seu sucesso como escritor era a prova disso. Tinha uma namorada, Clarice, que sempre o acompanhava nas noites de autógrafo e nos eventos em que ele deveria estar presente. Sua infância e juventude sempre foram cercadas de muitos livros e discussões literárias. Seu pai era tradutor, editor e dono de livraria. Estava no sangue.
Em entrevistas, sempre lhe perguntavam por que escrevia sobre o lúgubre, o macabro e o assustador. "Porque eu gosto, a morte me fascina, os mortos não têm seu devido lugar na sociedade, escrever sobre eles parece que paga uma dívida. Além do mais, o gênero horror nunca teve o valor que merece na literatura, sendo sempre considerado como um gênero menor. Nasci para mudar isso....". A modéstia parecia não fazer parte de sua personalidade. Tudo o que ele dizia estava na primeira capa do suplemento cultural dos principais jornais de circulação nacionais. Sua palavra era a lei.
Naquele dia, estava dormindo até mais tarde (como sempre fazia!), quando o telefone tocou. Ele atendeu com um certo enfaro. Sua voz sonolenta logo virou um grito desesperado que botou em polvorosa a casa toda. Clarice estava entre as vítimas do acidente aéreo da última madrugada. Eles haviam combinado se encontrar quando ela voltasse da viagem que havia feito nos últimos dias.
O velório. O caixão fechado. O choro convulsivo. A bênção. As flores. O cemitério. O último adeus. A primeira pá de terra. A última pá de terra. O vazio. A solidão. As manchetes nos jornais. "Famoso escritor perde namorada tragicamente". "Será o fim de sua carreira?" "A ironia da vida se fez presente mais uma vez". Nada mais importava. Por quê?! Era a única coisa que saía de sua boca já fazia alguns dias. Como viver a vida normalmente, se todos os lugares e tudo o que faço me trazem lembranças?
Ele está sentado em seu quarto, enxugando as lágrimas que insistem em brotar de seus olhos, quando sua atenção se volta para a estante com todas as reportagens sobre ele, todas as críticas, todos os prêmios e fotos. Seus livros: "A dança da morte". "Esqueletos no armário". "A viúva de sangue". Começou a caminhar em direção a eles. E a cada passo que dava, seu asco aumentava. Vomitou em cima do computador, cuja tela exibia uma imagem da Morte, com sua foice ensangüentada na mão, ceifando cabeças, como se estivesse colhendo trigo em uma lavoura. "Como pude andar ao lado dela? A morte me traiu. Levou quem eu mais amava. A tragédia se abateu em minha vida". O tema que o fez famoso também trouxe a ruína e a dor mais atroz que ele poderia suportar. Pegou todos os livros, jornais, fotos, prêmios e rascunhos e jogou pela janela, gritando ferozmente. Seus pais ficaram muito assustados com esta reação descontrolada e chamaram o médico. Sedado, ele dormiu agitadamente e sonhou a noite inteira. Clarice pedia-lhe que não sofresse tanto. Logo ele que tinha um caso de tanta empatia com a morte. A hora dela havia chegado, não havia nada mais o que fazer.
Acordou, havia dormido quase doze horas, estava muito grogue. O remédio era forte e a dose fora alta. Sua mente não parava de trabalhar um minuto e a imagem de Clarice sendo levada pela mão por uma figura encapuzada, rindo de satisfação, não o deixava em paz. Ele não conseguia mais comer direito, havia perdido seis quilos e estava perdendo mais. Sua barba estava enorme e sua higiene pessoal começou a ficar comprometida. Ele não tinha força para reagir sozinho. A família resolveu interná-lo em uma clínica psiquiátrica, com medo que ele tentasse o suicídio. O assédio da imprensa já estava beirando o insuportável, de modo que tudo foi feito em sigilo. Nem Jairo sabia para onde o estavam levando.
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Descaminhos
Short StoryUm famoso escritor sente na própria carne os efeitos de sua personagem mais famosa. Ficção curta ideal para ler no celular no caminho para o trabalho ou de volta para casa.