Enganos e Consequências

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França, segunda metade do século XVII.

Vladímir subiu os degraus de entrada da imponente propriedade, pulando-os a passos largos. Ele não estava trajando as vestes que costumava usar em visita àquela suntuosa mansão, vestia roupas de viagem, que eram até um tanto desgastadas e fora dos padrões da moda francesa da época. Desviou-se de sua viagem assim que soube do final desastroso da batalha ocorrida mais ao norte do país. Uma derrota surpreendente e inesperada.

Um criado abriu a porta e o recebeu educadamente:

— Bom dia, senhor.

— Anuncie minha chegada ao conde — solicitou, e, ao invés de seguir o criado até a primeira sala de visitas, atravessou o saguão principal e virou à esquerda indo para a parte mais antiga da casa. O criado retornou e o seguiu.

Aquele palácio fora recentemente construído sobre as ruínas de um antigo castelo e o proprietário, Armand Gareth, não poupou despesas na obra que era um verdadeiro exagero em luxo e ostentação. Vladímir já havia vivido dessa mesma maneira no passado, cercado de luxo, conforto e riquezas, mas havia deixado essa vida há muito tempo; quando o seu bem mais precioso lhe fora tomado e ele se atirou pelos caminhos das sombras e da morte.

No trajeto, com urgência, retirou suas grossas luvas de couro; na mão esquerda via-se uma aliança com os escritos Nemtsi, na direita um antigo anel de pedra escura com um brasão entalhado; símbolos dos dois mundos aos quais ele pertencera. Tinha o fino cabelo, castanho e engordurado, solto sobre os ombros, usava botas, calças largas e uma casaca fechada que cobria até os joelhos. O amplo jardim interno e o corredor lateral que levava à sala de negócios de Armand Gareth, para onde se dirigia, ainda preservava a arquitetura medieval da construção anterior e Vladímir ao chegar se deparou com uma das pessoas que buscou encontrar nesse dia: Eleonora Burnier.

Ela estava jogada ao chão de pedra, rodeada de seu amplo vestido de seda azul e apoiava os braços e a cabeça em um banco de jardim, várias aias se inclinavam para consolá-la. Vladímir percebeu que ela acabara de receber a notícia da morte de Felipe Burnier; Armand chegara há pouco.

Ele deu mais um passo à frente e mesmo a certa distância ela notou sua presença. Eleonora ergueu a cabeça e o crucifixo lampejou em seu colo; seus olhos negros e profundos, de quem já havia enterrado todos os seus filhos e agora perdia o marido, encontraram os dele.

Vladímir era capaz de descobrir o que as pessoas pensavam ou sentiam e Eleonora era parcialmente fechada a ele. Ela era capaz de bloquear seus principais pensamentos, mas os detalhes lhe escapavam permitindo a Vladímir puxar o fio de suas lembranças e, se ela permitisse que ele a tocasse, poderia ler a sua alma.

Assim que o viu, ela procurou rapidamente enxugar, com as costas das mãos, as lágrimas que haviam escorrido por seu rosto. Deslizou a mão direita pela face até chegar à orelha quando, então, virou a palma e limpou as lágrimas que haviam corrido ali. Apesar de toda a dor que sentia, Eleonora não permitiria mostrar fraqueza diante dele, colocando-se, como sempre, altiva e poderosa. Fez em seguida os movimentos para se erguer sem em nenhum momento deixar de encará-lo. As acompanhantes logo se apressaram em ajudá-la.

Vladímir nunca se entendeu ou fora, de fato, amigo de Felipe Burnier, entretanto sempre respeitou e admirou sua mulher, Eleonora. Queria agora que fosse possível, de alguma maneira, consolá-la, mas Eleonora não permitiria sua aproximação nesse momento de dor.

Enquanto observava a saída dela e das aias, Armand Gareth, um homem que, como Vladímir, aparentava cerca de cinquenta anos de idade, entrou pela porta lateral ao saguão. Vinha vestido como um fidalgo que seguia a recente e pomposa moda da época: renda no pescoço, casaca ornamentada que caia sobre culotes largos, meias e sapatos enfeitados com fitas. Na cabeça, uma longa peruca castanha cujos cachos se acomodavam pelo ombro e peito.

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