Capítulo I

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Cassie
Eu sempre soube como as coisas eram, mas eu sempre gostei de sonhar um pouco. Sabe toda aquela história de “o homem precisa de uma utopia pra viver”? Então, é exatamente o que me acontece. A minha utopia é viver sem ter que esperar que uma enxurrada de azar caia sobre mim, mas, por mais que eu goste muito de sonhar, é impossível fugir da realidade no dia seguinte.
Sempre foi muito difícil sonhar, mas agora que ele morreu. Morreu. É tão difícil pronunciar isso, é tão difícil imaginar que ontem mesmo ele estava aqui, fazendo palhaçadas e tentando me entreter. E agora está ali, em um caixão, dormindo. Pra sempre. Estou sentindo meu coração liberar uma toxina de dor por todo  meu corpo, e as lágrimas arderem nos meus olhos. Mas eu não posso desmoronar, ainda não, meus familiares ainda não pararam de me dar palavras de apoio e me abraçar e eu só consigo repudiar cada um deles. Enquanto meu pai estava vivo todos sempre o apedrejaram, agora dizem que ele era uma boa pessoa, o caralho, meu pai era um rei! De um coração enorme. “Quando eu morrer, vou estar do lado do caixão, só pra rir da sua cara. Você vai chorar não vai 'olho de tralhoto'?”. Afasto as lembranças enquanto termino de cumprimentar todos os meus familiares, não quero chorar na frente deles.
Minha família é religiosa, e eu respeito quando decidem fazer uma oração, meu pai tinha muita fé, creio que gostaria disso. Quando terminam, pedem para eu dizer algo, e eu realmente quero fazê-lo. Eu sempre pensei no que faria ou no que diria nesse momento, sim, eu sempre pensei. Desde pequena meu pai dizia que eu choraria muito em sua morte, o que me fazia rir, e brincar de volta, dizendo que iria dar graças a Deus.
- Meu pai foi um homem com muitos erros, muitos defeitos. Mas, ele era foda, essa palavra o define muito bem. Mesmo com todos os defeitos sua capacidade de amar e o tamanho do seu coração não podem ser questionados. Ele amou, e quando amou, o fez de todo seu coração. Ele ajudou a muitos, pagou por todos os seus erros, sofreu. Mas nunca, NUNCA, deixou de ajudar alguém, ele sempre se prestou, se doou pra qualquer que fosse, mesmo quando esse alguém não merecia – instintivamente olhei para minha família – e por mais que não tenha dito a ele vezes o suficiente eu o amo. E talvez, só agora perceba o quanto.
Parei de falar, porque as lágrimas já começaram a cair, sequei-as e abracei minha irmã. Pedi para colocarem a música que ele dizia ser dele. Precisava ouvir mais uma vez. Uma última vez. Ao lado dele. A música é Tempo Perdido, Legião Urbana. Ele adorava essa música. Perdi a conta de quantas vezes me fizera dançar ao som dela.
Quando a música acabou, meu coração acelerou, havia chegado a hora. Eu não queria, eu não estava preparada, mas o tempo não espera, o tempo não para. Primeiro, colocaram a tampa no caixão, já não conseguia respirar, aquela mistura de dor e medo invadia meus pensamentos e já não conseguia pensar. E se meu pai acordar, como vai respirar com o caixão fechado, eles precisam abrir, ele não morreu. O desespero tomou conta de mim e eu pedi para que parassem e abrissem o caixão só mais uma vez, para minha decepção ele ainda estava dormindo, sussurrei pedindo que levantasse, mas não adiantou. Michael me abraçou.
- Cass, tá tudo bem. Eu tô aqui. – abracei-o de volta e acenei para que continuassem o procedimento.
- E se ele acordar Mai, vai tá tudo fechado e ele não vai conseguir respirar e ele vai sufocar. – sussurrei quando Michael me abraçou, seus olhos cheios de dor.
Quatro homens ergueram o caixão já fechado para levá-lo a cova. Enquanto caminhava até lá meu peito doía, meus olhos ardiam e eu não conseguia administrar meus sentimentos, nem meus pensamentos. Minha irmã foi para casa, estava cansada e muito triste. Já não havia mais ninguém que precisava de força. Apenas eu. Achei que não poderia piorar, mas quando baixaram o caixão e o colocaram sete palmos abaixo da terra, foi como se o meu chão estivesse se aberto, e eu estivesse caindo em um abismo sem fim.
No primeiro arremesso de terra, foi que minha ficha realmente caiu. Ele estava sendo enterrado e eu nunca mais veria seu rosto. Nunca mais. Isso doía mais do que um soco no estômago. As lágrimas caíram involuntariamente, e eu não conseguia mais conter o choro, chorava e soluçava igual uma criança sentida. Me sentia abandonada, sozinha e com um peso maior nas costas. Eu precisaria ser forte dali em diante, eu sabia disso. Mas será que conseguiria?

Michael 

Estávamos tão felizes, havíamos passado no vestibular e eu estava tão feliz. E ela, ela também. O pai dela parecia tão bem. Estava todo eufórico por ver sua filha mais velha passar em uma federal, ficou gritando feito louco de tanto orgulho quando chamaram seu nome “É minha filha, minha filha!”. Sorrio só de lembrar. Ela havia feito um daqueles cursinhos preparatórios e eles estavam chamando os nomes dos alunos que passaram em boas faculdades.
Saímos para comemorar, eu também havia passado no curso que queria. Nós dançamos, nos acabamos. Estava tão bem que nem imaginava o soco que a vida lhe daria no dia seguinte, ninguém imaginava.
Não tive o tempo que queria com ela aquela noite, iríamos curtir no dia seguinte e ela estava com sua família completa, bom, quase completa. Somos amigos desde o Ensino Médio, não melhores amigos, mas eu confiava nela e ela confiava em mim. 
No dia seguinte, pela manhã, recebi uma ligação. Era Cassie. Ela não acorda cedo assim, ainda mais depois de uma festa como a de ontem, estou preocupado, não consegui atender a primeira chamada. Levanto e ligo de volta. Ela atende, chorando.
- Ele não tá bem, Mai, ele não tá bem. Ele tá no hospital e não tá respirando. – falou sem respirar um minuto.
- Ele quem Cass? Onde você tá? – falei um pouco rápido demais.
- Meu pai Mai, meu pai. Eu tô no hospital esperando notícias, mas os médicos disseram que é grave e eu estou tão apavorada, eu não sei o que fazer. – disse soluçando e aquilo fazia meu coração encolher.
- Me manda o endereço, eu vou ficar com você.
Ouvi um ok baixo, e em seguida recebi a mensagem com o endereço, chamei um Uber e fui me arrumar em dez minutos já estava pronto, estava levando duas blusas de frio porque Cass sempre esquece esses detalhes.
[...]
Quando cheguei, encontrei-a na sala de espera e logo a abracei e como imaginei estava gelada, entreguei-lhe a blusa e sentamos em silêncio. Ela não queria falar, e eu entendi.
[...]
Passou um tempo e o médico chegou com uma cara cansada. Cass levantou rapidamente.
- E então doutor? Como ele está? Já posso ir vê-lo? – disse apreensiva.
- Tivemos complicações, ele teve um ataque cardíaco, tentamos reanimá-lo mas ele não resistiu, sinto muito. – concluiu com muita pena estampada no rosto.
Um silêncio pairou a sala, Cass estava estática.
- Cass?
- Ele morreu. – e então me abraçou, mas não chorou muito, creio que não tinha caído a ficha.
Como era muito cedo, o velório e o enterro seriam no mesmo dia. Como Cass estava consolando a madrasta desci para buscar um café pra ela.
Quando voltei, ela já estava se preparando para ir embora, entreguei-lhe o café e fomos saindo.
Como elas vieram na ambulância, chamei um Uber para levá-las em casa, era o melhor que podia fazer no momento. Fomos pra sua casa, ela disse que precisava tomar um banho e se arrumar para conseguir “ser forte” e cuidar de todos os detalhes. Eu já havia tomado banho, então esperei para dar apoio. Ela saiu do banheiro, e como ficava próximo a sala de estar e eu estava no sofá, logo que ela saiu se deparou comigo, ela me olhou surpresa, ela estava linda, por Deus, estava só de moletom e é pecado sentir tesão mesmo em um estado tão crítico? Afastei os pensamentos errôneos e me concentrei em dar apoio a ela.
- E.. e.. eu não fui embora, estava esperando você, ã.. pensei que poderia precisar de ajuda, ã.. ou só de companhia e... – estava sem graça, e estava falando um bando de asneira.
- Tudo bem, fico feliz que ainda esteja aqui. – sorriu. Ela tinha um sorriso lindo.


Nota da autora
A imagem de capa foi produzida por Akeno Kurokawa Ilustrações, retirada do site http://www.alinefranca.com.

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⏰ Última atualização: Aug 13, 2017 ⏰

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