Começo aqui os relatos sobre aquela manhã diferente que assombra os meus dias atuais. Aquele maldito dia em que deixei a casa dos meus pais. Montado em uma biciclieta velha — doada pelos meus fieis amigos de favela, pelo preço de apenas R$1,99 —, deixei minha pequenina cidade, Jacupiranga, e segui incansavelmente para São Paulo, a capital. Meus cabelos balançavam — não pelo vento, mas pelos buracos da estrada. Eu terminei o percurso alguns dias depois, apenas bebendo água e comendo bolacha. São Paulo era enorme... eu me perdi no meio daquela multidão — com medo dos tiros, na minha favela as pessoas ficavam em suas casas —, mas sentia que ia encontrar meu lugar no mundo!
9 de Janeiro de 2027, São Paulo - SP. 07h00m - MC Sopinhas
Um amigo de um primo de um amigo do melhor amigo de um amigo do irmão do meu pai era caixa na MC Sopinhas, eu entrei como atendente. Eu me senti bem acolhido no lugar, afinal, todos eram fracassados como eu, que não haviam passado no TEPIM — Teste Presencial Para Índios Matriculados. O meu primeiro cliente foi um homem alto, de cabelos longos e secos, ligeiramente feio e negro. Era corcunda e possuía um olhar mortal. Era Humberto! E u não pensei nisso, eu senti isso! Os meus colegas estavam prolongando seus horários de almoço sem o conhecimento do chefe, logo, eu era aquele quem deveria atender a raspa de carvão.
—Bom dia, seja bem-vindo ao MC Sopinhas, o que vai querer? — eu escondi o rosto com o cardápio.
—Hummm... o que vocês têm?
—Sopa.
—Sopa de quê?
—Sopa de sopa — eu queria espantá-lo do lugar.
—Me dá o cardápio, por favor.
—Aqui está... — infelizmente tive que mostrar o rosto.
—Vou querer essa "caseira", parece boa.
—Acabou.
—Quem disse que acabou? — o chefe apareceu atrás de mim do nada, eu levei um susto, roubei alguns segundos para recuperar o fôlego.
—É... b-b-bem... n-não acabou, s-senhor?
—Não, não acabou. Traga uma sopa para esse homem, Murilo!
—Murilo?! — o negro homossexual tinha percebido...
—Sim. É um dos novos funcionários.
—Já era daqui? — ele tomava o cafézinho que estava na mesa.
—N-não... — eu virava para o chão, tentando evitar que me descobrisse de verdade.
—Era de onde?
—J-jacupiranga...
—Que interessante... somos do mesmo lugar. Murilo de quê?
—Sales.
—Então você está na cidade, Murilo... que ótimo, não é mesmo? Me traga a sopa, eu preciso ir logo... tenho compromisso.
—Tudo bem...
—Que isso não se repita! — gritava o senhor Jobson, meu chefe.
Eu levei a sopa para o irmão de Solimões, ele bebeu rapidamente e saiu, nem disse mais nada. O chefe passou o resto do dia me observando, eu não aguentava aquilo...
10 de Janeiro de 2027, São Paulo - SP. 09h40m - MC Sopinhas
Eu estava em mais um dia de trabalho, o senhor Jobson já tinha retomado sua confiança em mim. Nesse momento, eu ouvi uma explosão. A porta da frente tinha sido derrubada, as janelas quebradas, os clientes estavam em pânico! Da fumaça da explosão, surgiu uma silhueta cheia e redonda, andando em passos lerdos e largos, vindo em minha direção — estava acompanhado por mais pelo menos dois. Assim que tomei ciência da situação, percebi que estávamos no meio de um crime armado e organizado. Mas quem diabos roubaria uma lanchonete que vende sopas e lucra menos de dois mil reais por mês? Bem... aquele homem.
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Abaixo das Sombras II
HumorQue acontece com Murilo e os fazendeiros favelados do Vale do Ribeira? Confira nessa emocionante história.