Capítulo 28 - Final (Novo narrador)

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Acordo num impulso assutado e me ergo parcialmente da cama forrada com um lençol branco, agora bagunçado.

  - Lucas! - Ouço a voz de minha mãe gritando e vindo em minha direção, porém não a vejo, apenas posso focar meu olhar em meu lado e ver o corpo de Alice imóvel, esticado sobre uma cama idêntica a minha, a diferença era que sobre a minha cama havia uma pessoa acordada, e sobre a cama dela uma pessoa dormindo. Ouço a máquina apitando com um som incômodo, mas nada comparado ao seu significado e a pontada que ele causou em meu peito. Mesmo que fosse o que eu esperava, não foi motivo suficiente para diminuir a minha reação.

  - Chame um médico agora! - Grito para minha mãe enquanto me levanto totalmente da cama, sem me importar que tom eu deveria usar para falar com ela por ser minha mãe ou por estar naquela situação, e simplesmente vou em direção ao corpo de Alice, balançando-a freneticamente, implorando para que ela acordasse, e o que eram para ser palavras repetidas em minha mente, acabam se tornando em gritos sem que eu percebesse.

  - ACORDA! ACORDA ACORDA ACORDA POR FAVOR! ALICE!

  - Senhor Lucas, por favor, se acalme - uma médica me diz enquanto coloca as mãos em meu ombro, e logo outro médico me arrasta para fora do quarto junto com minha mãe. 

Eles pareciam apressados, mas nao sei nem mesmo dizer como são seus rostos, já que no momento tenho apenas uma imagem em minha mente: o sangue escorrendo pelo pescoço de Alice. E agora, ali estava ela. Serena, sem sague, sem corte, sem canivete, sem lagrimas, apenas serena, mas ainda parecia me dar adeus.

Após muitos movimentos específicos e treinados em vão, todos os médicos dentro do quarto se calam, diminuem a velocidade e mantém sua atenção no barulho que agora parecia o único no mundo.

  - Hora da morte, - a médica olha o relógio enquanto outro médico ao seu lado pega a prancheta - 23:16.

Só então percebo que minha mãe esteve todo esse tempo ao meu lado: o momento no qual ela me abraça encharcando minha roupa hospitalar com suas lágrimas e nelas abafando os seus gritos.

Não tenho muito o que pensar, mas admito que preferiria pensar muito ao pouco que se passava pela minha mente, de novo e de novo. Aquela simples imagem me corroía. 

Eu e minha mãe ficamos numa mesma posição por um longo período de tempo. Meus braços envoltos em seu corpo e suas mãos esticando minha roupa. Podia sentir que a qualquer momento minha roupa sairia em suas mãos, ou pelo menos um pedaço dela, mas não era relevante. Eu continuava de olhos abertos enquanto ela pressionava seu rosto contra meu peito. Mesmo com os olhos fixos num ponto qualquer, alguns sentidos simplesmente nao importavam mais. Minha visão, audição, tato, oufato, tudo era muito superficial. Fossem as pessoas passando com dificuldade pelos corredores, desviando de nossa presença ou outros que nos encaravam com incômodo. Talvez por pena, ou apenas pelo incômodo de acabarem vendo a nossa situação. A única informação que processava em minha mente era a cena que fui obrigado a presenciar num outro mundo, um mundo diferente e distante mas real o suficiente para me deixar em um estado semelhante ao de transe. Talvez foi o motivo pelo qual não percebi quando meu pai chegou e puxou minha mãe para si. Ou horas depois, quando meus pais conversaram chorosos com os médicos, ou tentaram conversar comigo, logo desistindo quando perceberam que eu não responderia, me deixando lá. Eu apenas não podia raciocinar. Até que finalmente, volto para mim e olho pela janela. O sol, meio sem graça, ilumina meu rosto com um raio preciso de luz alaranjada, mas apenas o que as nuvens chorosas permitiram que fosse mostrado.

Encaro o reflexo da janela com dor, talvez nos olhos, na mente, no peito, não sei dizer, e mais uma vez, uma última e serena vez, se passa pelos meus olhos a mesma imagem. A imagem de uma Alice determinada e assustada. A imagem de uma irmã, uma amiga, com lágrimas de arrependimento traçando rotas incalculáveis em seu rosto, e os olhos amedrontados cerrados, como se tivesse medo de que pudesse ver o que estava prestes a fazer. Mas ela não viu. Não se importou. Ela apenas fez.

  - Covarde. - Acabo soltando este sussurro quase inaudível.

Olho para os lados. O corredor que estou está vazio. Deve ter sido motivo para eu não me importar com a lágrima que logo desceu.

  - Você é mesmo egoísta Alice. - Coloco as mãos no rosto, como se sentisse vergonha de mim mesmo. - Depois do que me faz presenciar, me deixa aqui sozinho? - Dou uma risada pesada, rancorosa e sem força. Uma risada que serviria de impedimento para os soluços que viriam a seguir, isto é, se tivesse dado certo.

XX dias depois

Passeio pela trilha que divide as fileiras as quais eu aprecio. Uma brisa arde em meu rosto sem livrar-me do ambiente pesado e denso. Mesmo com cenas lindas ainda acaba por ser um lugar macabro, afinal, mesmo que pensem que sim, utilizar seres vivos como decoração assim como as flores amontoadas não tiram de local o sentimento que passa uma hospedagem de mortos.

Avisto logo a frente, num banco posicionado na entrada do lugar uma figura mais que familiar. O cabelo curto e os fios platinados que escondiam o rosto angelical que mesmo fora de minha visão parecia muito nítido em minha mente. Entendo o que ela aprecia logo que vejo o parque luxuosamente projetado logo à sua frente.

Sigo meu caminho em direção a Angel até que, ao estar a seu alcance, abraço-a por trás. A mesma não se assusta, como se soubesse que eu vinha, e apenas coloca suas mãos em meus braços e diz:

  - Bela visão para um cemitério não é Mesmo?

Concordo em silêncio. Ela entende, sei que sim. Lembro que meu silêncio era uma das coisas que Alice entendia. E entendia muito bem.

Fecho os olhos e diversos momentos se passam pela minha mente, pudessem estes envolver tapas, gritos ou risadas, todos tinham o mesmo em comum: eram sobre a mesma pirralha.

Solto Angel, que logo me olha pensativa por cima do ombro mas desiste quando percebe que busco minha privacidade.

As nuvens que cobriam o brilho do sol pareciam querer expressar uma perda, e o vento que agora rasga meu rosto e luta contra meu cabelo parece esperar descontar sua fúria no pó que levanta ou nas folhas que arranca, porém, nunca satisfeita a natureza está, assim como eu.

  - Valeu a pena Alice? - Jogo a pergunta contra o vento como se esperasse que o mesmo me trouxesse a resposta, mesmo que saiba que ele não pode.

Volto para casa com Angel que dita eventos e realizações frenéticas enquanto eu apenas olho em direção ao final do horizonte e penso. Não paro de pensar a algum tempo, a algumas semanas para ser mais exato, desde que saí daquele hospital o mundo aqui fora tem sido diferente, para ser mais exato, o mundo fora de minha mente parece ser mais perigoso, mais real, mesmo que falte nele um pedaço gigante. Até que, de longe, vejo a silhueta exata, os cabelos que como cortinas davam espaço para o rosto e o sorriso que cortava sua face traçando sua identidade. Vejo a figura de minha irmã andando livremente, rindo de mãos dadas com alguém, mas meus olhos estão fitados na garota. Seguimos nos aproximando cada vez mais até que, segundos antes de sairmos do campo de visão um do outro cruzando nossos caminhos, há um leve sorriso, servindo como um cumprimento capaz de suprir a utilidade das palavras. Como eu disse, um mundo tão real e ainda assim tão ilusório.

  - Valeu a pena Alice? - repito a frase que se acomodou em minha mente - trocar a dolorosa realidade por uma doce ilusão? - suspiro.

Espero que tenha valhido.


 

Quando fecho os olhosOnde histórias criam vida. Descubra agora