Querido Gon,
Obrigado. Essa carta não poderia começar de um jeito diferente. Eu preciso, mais que tudo, te agradecer. Então eu repito, para você, para o vento, para o riacho perto de casa e para as flores em minha varanda. Obrigado.
Você deve estar se perguntando se estou louco. Tanto tempo depois de nossos caminhos se separarem, em pleno século XXI, eu te mando uma carta, e o pior – te agradecendo sem algum motivo aparente.
Ah, Gon. Você nem sabe o que fez por mim, e me sinto extremamente culpado por não ter te contado antes.
A lembrança é tão vívida que sinto como se fosse ontem que tínhamos doze anos. Quando nos conhecemos.
Às vezes me pego pensando o que teria acontecido comigo se você não tivesse reparado em mim. Se você fosse indiferente ao garoto de cabelos claros e olhos azuis, shorts roxos e skate amarelo.
Vou te explicar o que teria acontecido: eu não estaria vivo para escrever essa carta para você ou para qualquer outro.
Eu não queria deixar transparecer, então sempre agia como se não me importasse com as coisas que mais me amedrontavam.
E você, com suas loucuras, alegria, ambição e declarações aleatórias, conseguiu me salvar em tantos sentidos.
Minha família estava me afogando em toda a sua parada de torturas, portão, guardas, assassinatos. E quando eu percebi que tinha um comportamento compulsivo de matar, entrei em crise.
Veja bem, por mais que tenha me gabado muito de minhas habilidades, eu não tinha compactuado muito com a ideia de tirar vidas, e, de repente, eu acabava a fazendo sem que precisasse querer. Basicamente, eu nem sabia minha opinião sobre algo que eu fazia todos os dias.
E tem a minha família. Meu pai é distante, mesmo eu o idolatrando como um deus. Minha mãe é uma histérica que pira sempre que eu cogito a ideia de visitar a civilização do exterior da casa. Mal conheço Kalluto. Milluki é apenas um gordo que não tem nada para fazer da vida. A única pessoa decente na família é Alluka, que, naquela época, vivia trancada às sete chaves.
E não, não me esqueci de Illumi.
Eu simplesmente não conseguia fugir dele. Não havia um momento em que pudesse fingir que nada disso existia e que estava tudo bem. Illumi não me deixava respirar.
Queria sumir, e já não sentia mais nada. Ao mesmo tempo, sentia todas as angústias do mundo. Eu conheci a agonia.
Imagine uma criança de onze anos que cresceu cedo demais. Uma criança de onze anos que estava com vontade de se matar.
Acontece que nem isso eu conseguia. Hoje em dia, sou muito grato por esse fato, mas na época era ainda mais sufocante ser imune a eletricidade e a qualquer tipo de veneno.
Por isso, eu saía de casa. Procurava pelos grandes perigos do mundo, queria me pôr em risco. E o que era visto pelos outros como grandes auto-confiança e habilidade, era na verdade indiferença à minha própria vida. Me divertia experienciando, mas também não me importaria de morrer.
Até que, em uma dessas idas e vindas, fui parar num túnel com uma placa de número 99 colada em minha camisa, em meio a outras 404 pessoas que procuravam ser hunters, e encontrei você.
Eu estava me afogando. Estava aceitando a água gélida envolvendo-me, enquanto mirava o ponto de claridade que vinha da superfície, assistindo-o ficar cada vez mais distante.
Até que você me tirou do meu mar, e eu me livrei da escuridão que me puxava. Gon, você é meu ar. Gon, você é minha luz.
E tudo valeu tanto a pena. Cada luta, cada plano, cada riso e cada lágrima. Eu viveria tudo isso de novo e de novo para te ter ao meu lado.
Infelizmente, isso teve um fim. Você queria viver novas aventuras com seu pai e eu precisava cuidar de Alluka.
Lembro bem desse dia. Quando a realidade bateu em nossa porta, e mesmo não querendo, tivemos que abrir.
Doeu. Doeu te assistir subir a árvore com seu pai, sem mim. Doeu ter de virar as costas e guiar Alluka para algum lugar, qualquer lugar. Doeu ter que seguir em frente.
E aquele nosso "a gente se vê" foi ficando tão longe e impossível... e o nosso "tempinho" virou uma eternidade.
Ao mesmo tempo em que não sabia do seu paradeiro, eu não conseguia sair do lugar. Ficava preso ao passado e me recusava a sair de lá.
Talvez ainda não saiba, mas comprei uma casa na Ilha da Baleia. Talvez todos esses anos de tortura tenham me feito masoquista, e talvez eu só queira me convencer de que não te deixei completamente para trás.
Consegui seguir em frente. Vivi com Alluka um bom tempo, até que ela declarou que iria se mudar para ter mais espaço. Só estou esperando que ela realmente entenda o conceito de se mudar e deixe de morar aqui.
Parei de matar. Essa apenas não foi uma vitória maior do que a sua amizade.
E estava seguindo minha nova vida, e sonhei com você. Ah, Gon, logo quando eu estava quase te esquecendo! Mas não adianta mais.
Por você, sinto uma força de atração que me impede de te afastar de qualquer canto do meu subconsciente.
O conteúdo do sonho não importa, contanto que eu, você e Freud entendamos que sonho é a representação de um desejo imediato, e eu preciso ver você, só mais uma vez.
Então, educado do jeito que sou, começo essa carta com um "obrigado", e irei terminá-la com um "por favor".
Fale comigo. Sobre o que você quiser. Fale comigo sobre o nada, fale comigo sobre tudo. Conte-me como foi seu dia, ou conte-me algo que aconteceu há anos atrás. Mas fale comigo, que eu juro que não conto a ninguém.
Vamos nos encontrar. Quero sentir seu toque, o calor dos seus olhos, ver seu sorriso. Quero afagar seus cabelos, ouvir sua risada.
E, sinceramente, isso é meio constrangedor, mas eu estou com muita vontade de te beijar.
Para sempre seu amigo,
Killua
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Remetente: Killua Zoldyck
FanfictionA escrivaninha de madeira. O papel em branco. A caneta preta. Tua foto no porta retrato. Todos me chamavam. Então, escrevi essa carta, porque meu coração chama por você.