O que sabem as estatísticas sobre o suicídio?

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Olhando ao redor, Clarisse perdeu toda a coragem que a aposara segundos antes, percebendo todos os rostos espantados e que lhe passavam uma mensagem de desafio, virados em sua direção.

Ela não pensara antes de interromper o discurso metódico do vice-diretor Galvão, sobre um assunto que com toda certeza pouco lhe interessava. Aquilo era hipócrita da parte daquele lixo chamado Instituto Drummond de Andrade, a quem Lisse chamava de escola. Era claro que "os poderosos" estavam poucos se importando para aquela situação toda. Queriam apenas passar uma boa impressão para os pais, algo como: "Ei, desculpe por não ter se interessado por esse assunto antes, mas, vejam, agora estamos. Não tirem seus filhos daqui, por favor!". Aquilo era nojento demais.

— E então, Srta. Aguiar? O quê tem a acrescentar ao assunto? Surpreenda-nos com suas sábias palavras. — o vice-diretor a desafiou, tirando-na rapidamente de seus devaneios sem lógica, dando-lhe coragem novamente.

O Sr. Carlos Galvão, era um homem beirando seus sessenta e poucos anos, calvo e de estatura frágil, muitas vezes tinha um humor ácido e odiava ser interrompido em meio aos seus discursos. O que Clarisse acabara de fazer.

A garota não era de se pronunciar em discussões ou qualquer outra coisa em solo escolar. Na verdade, arriscaria dizer que ela mal abria a boca naquelas cinco horas que ficava presa no lugar. Seus colegas de classe a julgavam como alguém que não sabia falar, uma "mudinha". Mas naquele momento, depois de ouvir quase meia hora sobre dados e estatísticas, pesquisas feitas por tal site importante, algo robótico, a garota sentiu a necessidade de intervir.

Sua voz, um tanto quanto fina demais, em comparação às garotas de sua idade, ecoou pelo auditório do Instituto, calando o vice-diretor e todos ou outros, imediatamente. Seu grito – algo como: "o senhor realmente não sabe do que está falando" –, calou fundo na mente de todos. Diria até que ficaram curiosos para saber o quê falaria, já que se aquietaram, deixando seus parceiros de conversa de lado, esperando algum som sair de sua boca.

Limpando a garganta e usando uma tática que aprendeu em um filme, mas que nunca pôra em prática, para falar em público, deixou as palavras saírem – mesmo que ainda timidamente.

— De que adianta nos bombardear com dados e estatísticas, se o senhor parece pouco se lixar para esse assunto? Olhe para nós, vice-diretor, olhe para cada rosto presente neste auditório, acha que estão ouvindo seu discurso cheio de dados e estatísticas? Hm, acho que não, hein? — Lisse começou, aos poucos pegou confiança e as palavras já saiam naturalmente, como se estivesse falando com sua mãe ou qualquer pessoa com quem tinha um mínimo de intimidade. De repente, falar aquilo tudo não era mais aterrador.

Todos continuavam quietos, esperavam mais? Bem, se esperavam, não iria os decepcionar, não é mesmo? Tinha muito a falar.

— Do que adianta fazer isso, senhor? O mal foi feito e ele não vai voltar! Victor Carvalho sangrou até à morte no banheiro dos garotos e não adianta fingir se importar com ele agora, criando este circo todo. Se vocês se importassem de verdade, teriam colocado aqueles — apontou para o "grupinho popular" atrás dela — idiotas homofóbicos e preconceituosos em seus lugares, enquanto havia tempo. Mas um rapaz negro e homosexual, que só estava aqui graças à sua determinação em conseguir uma bolsa, não merecia a atenção dos senhores, quanto a tudo que passava nas mãos deles. — Clarisse bombardeou todos com suas palavras, enquanto os populares baixaram a cabeça, afinal de contas, ela estava certa.

— Agora me diga, Sr. Galvão: sabe mesmo sobre o quê está falando? — ela esperou a resposta, mas o homem continuava com uma expressão de puro espanto estampada na cara.

Ele não esperava aquilo tudo, não esperava aquelas palavras saídas da boca de uma adolescente de dezesseis anos, muito menos daquela em especial. "A mudinha". Ah, rótulos.

Pela primeira vez, em sei-lá-quantos anos lidando com aquelas criaturas insuportáveis e cheias de hormônios, uma delas conseguiu lhe roubar as palavras.

Clarisse riu. Era óbvio que ele não sabia sobre o quê estava falando e muito menos se importava com o assunto.

— O que as estatísticas sabem sobre levantar de manhã e não saber quem é aquele refletido no espelho do banheiro? O que elas sabem sobre andar na rua ouvindo cochichos, porque simplesmente ama alguém "igual" você, do mesmo sexo? O que a merda das estatísticas sabem sobre se sentir vazio, triste, sozinho e sem perspectivas todo santo dia? O que elas sabem sobre se sentir diferente dos outros e isso parecer ruim? Sabem o que é sentir tudo doído por dentro e só ver uma única saída para acabar com a maldita dor? Elas sabem, senhores? — quando terminou aquele novo bombardeio, Clarisse estava sem ar e com as bochechas molhadas e vermelhas. Eles poderiam não saber, mas ela sabia. E Victor também.

Sabia o que era se sentir só e infeliz, o que era ver as coisas ao redor perdendo a cor e o brilho, o que era sentir as pessoas lhe deixando aos poucos e não saber o porquê. E, o mais importante, sabia o que era sentir aquilo tudo e não saber o que fazer para parar.

Ela já estivera no lugar de Victor, mesmo não sabendo ao certo o que ele sentia – seria algo igual? –, já tentara o mesmo. Mas, diferente do garoto, seus pais chegaram bem na hora e fizeram com que ela desistisse. Desde então, idas ao psicólogo se tornaram frequentes e ela voltou a sentir-se bem. Às vezes ainda doía, mas a garota tentava se esquivar da dor.

Queria ter ajudado Victor também, mas não pôde. Ele era como ela, a meses atrás, mas não teve a mesma chance. Não estava o julgando por ter desistido, ido sem tentar lutar mais, não, Clarisse não estava. Afinal, se não fosse seus pais, ela teria ido como ele. Apenas queria que o garoto também tivesse esbarrado em alguém que pudesse tê-lo impedido. Ele estaria lá se ela tivesse prestado atenção, se qualquer outro tivesse e se importasse em ajudá-lo a não desistir.

O mal da sociedade está em colocar a culpa no suicida por não ter pedido ajuda, sendo que ela, nós nem se preocupamos em deixar claro que "precisando, estamos aí!". Como queremos que alguém desesperado em se livrar da dor e do vazio nos peça ajuda, se nem nos dignamos em olhar na cara do outro, desejar um bom-dia ou qualquer outra coisa, se só nos importamos com nosso próprio umbigo? Fica aí o questionamento.

— Bem, acho que nem elas e nem os senhores sabem. — Clarisse concluiu. — Então, de que adianta saber que 804 mil pessoas cometem suicídio todo ano, mas não ligar para isso? Não querer mudar essa realidade ou tentar se mudar? Você pode até não perceber, mas muitas vezes, você mesmo, com suas atitudes, está contribuindo para a dor do outro aumentar e ele desistir. — disse isso olhando fixamente para os populares, que àquela altura nem conseguiam mais se olhar de vergonha.

— Isto tudo que estão fazendo, não vale de nada se não se importarem em mudar. O suicídio não acontece para chamar atenção, muito menos por algum tipo de "birra infantil". Ele acontece porque simplesmente a pessoa não aguenta mais e todos estão ocupados demais com seus próprios problemas para poder se importar, ajudá-la. Pensem nisso. — acabando seu discurso, Clarisse deixou para trás as pessoas daquele auditório.

Depois que ela saiu, alguns bateram palmas para suas palavras. Outros, ficaram as processando ainda por muito tempo. Mas, para poucos, aquilo realmente tocou lá no fundo.

Talvez ela tenha ajudado alguém com aquilo, mudado seus conceitos ou feito com quê se desse uma nova chance. Nunca saberemos. Mas e você? Ela te ajudou a ver o quê não via?

Conto escrito por @AnaVitoriaAV

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