" Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno."
Jesus (Mateus 5:22)
O ônibus balançava a medida que chegava no terminal, a cada solavanco em um dos recorrentes buracos da rua meu corpo já se encurvando era atacado por uma onda repentina de medo. A sensação de ser perseguido em um ônibus vazio às três da manhã de uma fria segunda-feira me impulsionava a olhar pela janela procurando algo que não fosse escuridão.
Na noite anterior eu havia cometido algo terrível, mas ninguém acreditava em mim. As pessoas, na verdade, não costumavam acreditar em mim. Meu rosto enrubecido de vergonha e desespero era um contraste com a cara pálida do resto do mundo a sorrir com minha agonia.
Cheguei ao terminal desci do ônibus correndo e, apesar das luzes estarem acesas, tudo parecia escuro. Encontrei um motorista sentado no banco em frente a parada do meu ônibus. Seu rosto sombreado sinistramente pela cobertura do terminal.
-Filho, sente-se aqui - disse ele olhando repentinamente para mim - Quero falar com você.
Eu devagar fui me sentar ao seu lado, ainda ofegante não sabendo lidar com tudo aquilo que passava diante de mim.
-Pare de agir como criança - continuou ele após eu ter sentado - todos da sua família e igreja já sabem que você fez o que fez e acredite... Eles já fizeram também.
Atônito, eu estava atônito. Como aquele homem sabia de tudo, e como minha família e igreja já tinham cometido tal crime!
-É normal - disse com um sorriso, ignorando totalmente a surpresa nos meus olhos - todos nesse mundo são assassinos.
Quase vomitei quando ele falou aquilo, ele realmente sabia o que eu tinha feito. Mas de alguma maneira aquilo me tranquilizou. Todos eram assassinos.
Fiquei horas conversando com aquele homem misterioso. Cada hora era dedicada a um assassinato cometido por mim ou alguém próximo, e o peso foi se esvaindo e fui me sentindo tão bem, afinal eu tinha minhas justificativas e eu não era o único, todos mataram.
O dia raiou, mas com um sol opaco e triste. Peguei novamente o ônibus pra casa depois de agradecer o misterioso homem. No caminho aquela sensação de perseguição não se apartou de mim, mas ignorava-a. Cheguei em casa minha mãe me encontrou no portão desesperada, mas a surpresa foi minha ao fitar minha mãe e todas as pessoas que havia encontrado aquela manhã: todas estavam com aquela sombra sinistra no rosto.
Sei que parece estranho, mas depois de uns dias me acostumei com a sombra.
Passaram-se anos. Houve uma visita à um presídio com a igreja, onde um homem que havia estuprado uma mulher depois de roubá-la estava preso. Como parte do protocolo fui conversar com o homem que me abraçou apertado, de um jeito que quase me tirou o ar.
-Ora por mim - me disse como que com pressa - eu quero ser livre, agora! Vai rápido!
Comecei a orar quando algo me derrubou no chão, rastejei assustado para longe daquele homem. O motivo? Eu via seu rosto normalmente, sem sombra! E era lindo, estava chorando e sorrindo ao mesmo tempo. Ele correu em minha direção enquanto eu estava paralisado de medo. Me abraçou e depois parou e me disse:
-Acho que preciso ler algo pra você!
Pegou a Bíblia e leu:
"De maneira que, irmãos, somos devedores, não à carne para viver segundo a carne.
Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis.
Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus esses são filhos de Deus.
Porque não recebestes o espírito de escravidão, para outra vez estardes em temor, mas recebestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai.
O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus.
E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados."
Na mesma hora eu entendi! A conversa de anos atrás veio a minha cabeça e comecei a me sentir um assassino de novo. Então um homem de negro entrou na cela, seu rosto brilhava! Ele me abraçou e a culpa que eu sentia se foi, depois de todos esses anos eu quase me desequilibrei, pois não sabia viver sem o peso. Ele se afastou de mim, tirou a roupa e começou a caminhar nu em direção a um monte que de repente apareceu atrás da cela. Então vi o céu se abrir e duas mão lá do alto pegá-lo e começar a pregá-lo em uma cruz. Me desesperei, e parei de olhar. Aquele homem me fez a única coisa boa em anos e agora estavam odiando ele como se fosse eu, mas naquele momento percebi no espelho da cela, meu rosto estava brilhando como o do preso. Estão o detento olhou para mim sorrindo e disse:
-Alguém precisava pagar. Mas acho que você vai querer ver isso.
Quando olhei para trás, três homens brilhando tanto, estavam parados na minha frente e me chamaram por um nome:
-Hey, Justo!
Desabei em lágrimas. Pois naquele momento me senti justo! Como criança novamente!
Na verdade, eu nunca deveria ter deixado de ser criança!