Como tudo começou: a história de Xerazad

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Houve, muito tempo atrás, um rei poderosíssimo, da dinastia dos antigos reis persas, que dominaram até a Índia e a China. Seu povo o amava por sua sabedoria e prudência. Quando morreu, o poder passou às mãos do filho mais velho, Xariar. Homem justo, Xariar fez questão de que seu irmão mais novo, Xazaman, também governasse ao seu lado. Deu-lhe, então, um de seus reinos, cuja capital era a cidade de Samarcanda3. Passaram-se vinte anos de prosperidade, cada irmão vivendo em seu reino. Mas um dia Xariar, não suportando mais a saudade, decidiu rever Xazaman. Ordenou a seu grão-vizir4 que fosse até o irmão entregar-lhe os mais ricos presentes e um convite para vir visitá-lo. - Seu desejo é uma ordem - disse o grão-vizir. E partiu o mais rápido que pôde. Ao saber que o grão-vizir se aproximava da
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3. A cidade de Samarcanda fica, atualmente, na fronteira do Afeganistão. Estava na rota da seda, pela qual seda e outros produtos eram trazidos da China, através da Índia. Samarcanda pertence hoje ao Uzbequistão, que já foi parte da União Soviética e é país muçulmano. 4. Grão-vizir: auxiliar influente do soberano, era uma espécie de primeiro-ministro do reino. Em árabe moderno, vizir significa "ministro".
cidade, Xazaman foi ao seu encontro e pediu notícias do irmão. O grão-vizir, então, transmitiu as palavras do soberano. Xazaman ficou comovido e disse: - Meu irmão, o sultão5, honra-me com esse convite. Estou morto de vontade de o rever. Mas preciso de dez dias para preparar a viagem e partir. Fiquem em meu reino e partiremos juntos. Não é preciso que vocês se desloquem até a cidade: armem aqui mesmo suas tendas. Ordenarei que você e a sua comitiva sejam muito bem tratados! O vizir aceitou a oferta. Xazaman se dirigiu a Samarcanda para cuidar dos preparativos da viagem. Nomeou um conselho para cuidar de tudo durante a sua ausência; no comando, colocou um homem de sua total confiança. Dez dias depois, encaminhou-se até onde estavam as tendas. Então, desejando abraçar a esposa mais uma vez antes da partida, voltou sozinho ao palácio. Foi até os aposentos da rainha; ela, que não esperava revê-lo tão cedo, tinha introduzido no quarto um dos criados do marido. Qual não foi a emoção de Xazaman quando, chegando sem fazer ruído para fazer uma surpresa
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5. Sultão: governante muçulmano.
à esposa, por quem se julgava muito amado, avistou em seu quarto, à luz das tochas, um outro homem!6 Furioso, Xazaman pegou seu sabre e, num segundo, deu aos dois o sono da morte. Em seguida, saiu da cidade e se dirigiu às tendas. Sem contar a ninguém o que tinha acontecido, deu ordem de partir imediatamente. Antes de raiar o dia, partiram todos. É fácil imaginar a alegria de Xariar e Xazaman quando se reencontraram depois de tantos anos! Abraçaram-se, trocaram mil manifestações de afeto e entraram na cidade, em meio aos gritos de alegria da multidão. O sultão levou seu irmão a um palácio que tinha comunicação com o seu e possuía um belíssimo jardim.7 À noite, celebraram o reencontro com um jantar que durou até tarde. Depois, cada um se recolheu a seu quarto. Xazaman tinha passado momentos de alegria ao lado do irmão; mas, quando se viu sozinho em sua cama e pensou na infidelidade da esposa, ficou angustiado. Incapaz de dormir, levantou-se. Tão triste estava que seu rosto denunciava seus sentimentos. O irmão notou: "- Que está acontecendo com ele? Estará com saudades de seu reino e de sua esposa?"
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6. Uma passagem do Alcorão recomenda que as esposas sejam obedientes e conservem sua virtude na ausência do marido; aos adúlteros, o livro prescreve cem chicotadas. 7. Os jardins têm grande importância na cultura árabe desde antes do Islamismo. Os soberanos construíam jardins que simbolizavam o paraíso e se destinavam não apenas ao prazer, mas também à contemplação e à meditação. No Alcorão fala-se em jardins cortados por rios como recompensa divina para os benfeitores.
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Na manhã seguinte, Xariar deu de presente ao irmão o que a Índia produz de mais valioso e de mais belo e fez o possível para diverti-lo. Mas Xazaman parecia ainda mais triste. Um dia Xariar organizou uma caçada numa região distante do reino; a viagem até lá demorava cerca de dois dias. Xazaman não quis acompanhar o irmão; deu como pretexto sua saúde, que não estaria boa. O sultão aceitou a desculpa e partiu com toda a sua corte. Sozinho no palácio, Xazaman se recolheu a seu quarto e pôs-se a olhar o jardim através de uma janela. De repente, algo chamou sua atenção: uma porta secreta se abriu e por ela saíram vinte mulheres; ao lado delas, estava a sultana. Xazaman via a cena sem ser visto. De repente, as mulheres tiraram o véu,8 e ele pôde ver que, na verdade, eram dez homens com as mulheres! Então a sultana bateu palmas, chamando: - Massud! Massud! Àquele chamado, um homem desceu do alto de uma árvore e foi até a sultana. Xazaman, então, percebeu que Xariar era tão infeliz quanto ele. Sem dúvida, aquela era a sorte de todos os maridos: serem traídos. "- Já que é assim,
8. Em certos países muçulmanos, especialmente no Irã, as mulheres devem usar em público o xador, um véu que recobre todo o corpo. No Afeganistão, na época do regime dos Talebãs, as mulheres eram obrigadas a usar em público a burca, uma roupa que só deixa os olhos à mostra. O uso do véu e a separação das mulheres (afastadas dos olhares masculinos dos homens de fora da família) eram práticas difundidas na maior parte do mundo islâmico. Movimentos de defesa dos direitos da mulher (inclusive muçulmanos) lutam contra o uso do véu, mas encontram resistência por vezes até mesmo das próprias mulheres.
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por que me atormentar lembrando o tempo todo uma infelicidade que é tão comum?" - disse ele a si mesmo. E daquele momento em diante esqueceu a tristeza. Mandou que lhe preparassem o jantar e comeu com apetite. Nos dias que se seguiram, estava alegre e bem-disposto. Quando Xariar retornou da caça, espantou-se ao ver como o estado de espírito do irmão havia mudado. E quis saber dele o motivo. Xazaman respondeu: - Você é meu sultão e meu senhor, mas, eu suplico, não exija que eu responda a essa pergunta! Xariar insistiu e, então, Xazaman contou tudo sobre a infidelidade da rainha de Samarcanda, sua própria esposa. Xariar aprovou o modo como o irmão tinha reagido: - Meu irmão, que história mais terrível essa! Você fez bem em castigar os traidores; foi uma ação justa. Agora compreendo a sua tristeza. Mas me conte o motivo de sua alegria. Xazaman tentou inutilmente fazer com que o irmão desistisse de querer uma resposta àquela pergunta. Xariar ficou ainda mais curioso, e ele teve de contar tudo o que acontecera durante a ausência do sultão. Terminou a história assim: - Tendo visto tantas infâmias, cheguei à conclu
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são de que todas as mulheres se comportam assim. É tolice fazer com que a nossa serenidade dependa da fidelidade delas. Por isso, o melhor é consolar-se! Xariar inicialmente se recusou a acreditar no que o irmão lhe contara. Xazaman, então, propôs que os dois fingissem ir a uma caçada e se ausentassem do palácio. Na mesma noite da partida, retornariam aos aposentos de Xazaman. Assim se fez. Partiram e, ao cair da noite, o sultão mandou que seu vizir ficasse no comando dos homens e não permitisse que ninguém saísse do acampamento. Os irmãos partiram sozinhos a cavalo até o palácio e, pela janela do quarto de Xazaman, viram a porta secreta se abrir, os dez homens disfarçados aparecerem acompanhados das mulheres, e a sultana chamar por Massud. Enfurecido, Xariar deu ordem ao grão-vizir de estrangular a esposa. Com suas próprias mãos, cortou a cabeça de todas as mulheres que acompanhavam a sultana. E, daquele dia em diante, decidiu que jamais voltaria a confiar nas mulheres. Ele se casaria com elas por uma noite e as faria estrangular no dia seguinte. Pouco tempo depois, Xazaman regressou a seu reino. Foi assim que o revoltado Xariar pôs em prática seu plano. Casava-se com uma das moças do reino, passava com ela uma noite, mas no dia seguinte mandava que fosse estrangulada. A cidade ficou abalada com aquela desumanidade. Pais e mães choravam por suas filhas. Todos temiam que elas se tornassem vítimas do sultão.

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O grão-vizir tinha duas filhas: a mais velha se chamava Xerazad e a mais nova, Dinarzad. Xerazad tinha grande coragem e inteligência; lia muito e tinha uma memória fabulosa. Era belíssima e muito virtuosa. O grão-vizir a amava muito. Um dia Xerazad lhe disse: - Meu querido pai, quero lhe pedir um favor. Peço que não me recuse o que desejo! Quero dar um basta nas crueldades do sultão contra as famílias desta cidade. - Sua intenção é muito justa, filha. Mas como pretende conseguir isso? - Casando-me com o sultão. O vizir horrorizou-se com aquelas palavras. Mas nada do que disse à filha pôde fazer com que Xerazad desistisse de seu plano. O pai, vencido pela insistência da moça, finalmente consentiu: angustiado, foi até o sultão e lhe disse que naquela noite lhe traria a filha. O sultão ficou muito espantado e ameaçou: - Mas saiba que, de manhã, eu lhe darei ordens para estrangulá-la. E se você se recusar, mandarei matá-lo! Quando o pai contou à filha que Xariar aceitara casar-se com ela, Xerazad ficou muito contente, como se tivesse recebido a melhor notícia do mundo. Agradeceu a seu pai e o consolou, assegurando-lhe que ele não se arrependeria por tê-la dado em casamento ao sultão. Depois, chamou a irmã e lhe disse em segredo: - Querida irmã, preciso de sua ajuda. Pedirei ao
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sultão que você durma no quarto nupcial. Amanhã, uma hora antes de raiar o dia, acorde-me e diga: "Minha irmã, por favor, conte uma daquelas belas histórias que você conhece!" De noite, Xerazad foi levada ao quarto nupcial e, chorando, implorou que a irmã Dinarzad pudesse passar a noite ali ao seu lado. O sultão concordou. Quando faltava uma hora para raiar o dia, a irmã fez exatamente como Xerazad havia pedido; acordou-a uma hora antes do nascer do sol, dizendo: - Minha querida irmã, antes que nasça o dia, conte uma daquelas belas histórias que você conhece! Talvez seja a última vez que terei o prazer de ouvi-las! Xerazad, então, começou a contar uma história. Quando chegou a um ponto decisivo, interrompeu a narrativa, dizendo: - Que pena, o dia já nasceu. Não vou poder contar o final de minha história... A continuação é ainda mais bonita e interessante. Mas eu não poderei contar a você, cara irmã, a menos que o sultão permita que eu a retome na próxima noite... O sultão, que já gostara muito do que Xerazad contara e ficara cheio de curiosidade em saber o que aconteceria depois, decidiu não matar a moça para poder ouvir o final daquela história. Mas, na noite seguinte e nas outras, Xerazad usou da mesma astúcia. Quando terminava uma história, começava a contar outra ainda mais interessante. A cada dia, prosseguia em sua narração até um certo ponto e, fazendo suspense, interrompia-a num momento deci
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sivo, despertando a curiosidade do sultão, que dizia a si mesmo: "- Vou deixá-la viva só mais esta vez para saber como essa história maravilhosa termina; mas amanhã, sem dúvida, mando executá-la." E assim, por meio das histórias dAs Mil e Uma Noites, Xerazad conseguiu enfeitiçar o esposo e adiar a morte. O sultão se encantava com as narrativas, com a memória fabulosa da esposa e com sua incrível coragem. Por fim, um dia lhe disse: - Querida Xerazad, vejo que as suas maravilhosas histórias não têm fim. Você conseguiu acabar com o ódio que eu alimentava contra todas as mulheres: meu amor por você me leva a renunciar àquela lei cruel que eu tinha estabelecido. Você salvou todas as moças que eu iria ainda sacrificar para satisfazer minha raiva. O grão-vizir foi o primeiro a saber daquela notícia, que em pouco tempo se espalhou por toda a cidade. Assim, de todas as partes do país se ouviram muitos elogios e bênçãos para o sultão e sua adorável esposa Xerazad.

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