somos todos heróis

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"O castelo está desmoronando", Hermione diz, sentada com as costas encostadas em um muro que já viu dias melhores. Nada parece real, é o que Hermione está pensando. É claro que a guerra viria, e ela sempre esperou que eles saíssem dela vencedores, mas a esperança parece algo ingênuo agora. Algo muito semelhante aos segundos entre o levantar do pé e o perceber que a Grande Escadaria moveu-se novamente. Ela sente que está caindo.

"Sim", Gina diz, tombando ao lado de Hermione. Seu cabelo ruivo está escapando do rabo-de-cavalo, suas unhas estão sujas. Há lágrimas secas cobrindo suas sardas. Seu rosto é um estudo sobre o luto. "Sim, o castelo está caindo. Mas Hogwarts, não."

E esse é um novo começo.

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Não é fácil reconstruir uma escola, Hermione aprende. Especialmente uma escola cuja personalidade sempre foi presente demais para que qualquer pessoa memorizasse todos os seus pequenos esconderijos. Não é função dela, Hermione sabe. Há uma série de pessoas que trabalham para o Ministério arquitetando a reconstrução de Hogwarts. McGonagall deve ter encontrado um feitiço de multiplicação, pois, subitamente, ela parece estar presente em todos os mil cantos do colégio, não tão gentilmente auxiliando cada parte da reforma. Hermione confia em sua capacidade de construir um lugar ainda mais mágico do que aquele que desmoronou.

Ainda assim, ela faz questão de aparecer todos os dias.

Ela tenta lembrar as coisas pequenas ─ não onde estava quando a morte de Harry foi anunciada, mas a piada sussurrada por Fred quando os dois se encontraram nas escadas, antes de tudo dar errado. A cor do cabelo de Tonks quando elas se despediram. Ela sabe, por que outros lhe contaram, que duelou Bellatrix ao lado de Luna e Gina, mas a memória foi perdida. Ela lembra os gritos. É a única constante da Batalha. Gritos, e terror, e a sensação de seu pé tropeçando em um corpo no chão. Lupin? Colin Creevey? A garota para quem sorriu quando Grifinória ganhou a Taça das Casas?

"Você deveria voltar para casa, Hermione", McGonagall lhe diz, não pela primeira vez. "Vá achar seus pais. Reverta o feitiço. Hogwarts estará pronta quando chegar a hora de você voltar", ela continua.

Hermione está prestes a concordar. A maior parte de seu cérebro, sempre lógica e coerente, sabe que McGonagall está certa. Mas algo irracional lhe diz que assistir ao prédio reerguer-se pode ajudá-la a reconstruir a própria memória ─ ajudá-la, quem sabe, a reconstruir tudo o que foi perdido. "Vou ficar só mais um pouco", ela responde. "Então, vou para casa."

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Há uma condição médica que mergulhadores enfrentam chamada embriaguez das profundezas, seus pais lhe contaram quando ela tinha 5 anos e eles estavam viajando para o Caribe. Cientificamente, ocorre quando o gás nitrogênio começa a ser dissolvido nos tecidos do nosso corpo. O nitrogênio atrasa a transmissão de impulsos nervosos nos neurônios, causando uma sensação semelhante a do consumo de álcool.

Na realidade, o mergulhador pode perder a capacidade de apontar a superfície. Ele pode passar horas tentando subir, quando, na verdade, está apenas mergulhando mais e mais profundamente no desconhecido. É uma sensação que Hermione conhece, caminhando pelos novos corredores de Hogwarts. Há momentos em que ela está certa de que encontrará uma versão mais nova de si mesma correndo pelo Salão Principal ─ uma versão que ainda sentia êxtase ao montar um novo plano. Uma versão que não entendia a impossibilidade de brincar de guerra sem encontrar morte.

Há momentos em que Hermione não tem certeza se está andando em direção ao futuro ou aprisionando-se no passado.

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Ela achava que os primeiros dias seriam os mais difíceis, sem considerar que, então, ela ainda estaria cercada por quase todas as pessoas importantes em sua vida. Então, ela podia andar com passos leves até a porta do quarto ao lado do seu e observar o Sr. e a Sra. Weasley dormirem com as varinhas nas mãos, ou, quem sabe, ir até o pátio às cinco e meia da manhã para encontrar Gina em uma vassoura, dizendo-lhe que até mesmo as quatro paredes de sua própria casa eram sufocantes demais para que ela pudesse dormir em paz. Hermione ficaria observando-a voar até escutar os estalos da madeira da casa, indicando que Ron e Harry estavam de pé.

Agora, as noites são mais difíceis. Durante o dia, ela anda de aula em aula, contando os segundos até que a voz de novos e antigos professores ninem seus medos por algumas horas. Mas seu cérebro não aprendeu a quietude. À noite, basta o estalo de uma mobília para que suas mãos comecem a tremer. Gina acorda gritando, às vezes. Outras, Hermione sente os dedos da garota contra a pulsação de seu pescoço. O sono é assustadoramente semelhante à morte, é algo que ambas aprendem.

Nos dias em que ela escuta os batimentos do próprio coração, Hermione se dirige às corujas; Gina, não muitos passos atrás. Em um pequeno pedaço de papel, ela escreve COMO ESTÃO AS COISAS?, o que se tornou um código para ESTAMOS TODOS VIVOS? e amarra no tornozelo de Errol. Nesses dias, ela amaldiçoa o mundo mágico pela sua recusa a utilizar algo tão simples quanto um celular. Ela tem vontade de gritar VOCÊS NÃO DEVERIAM SER MELHORES? ou então NÃO DEVERÍAMOS SER TODOS MELHORES?

Nesses dias, as duas garotas assistem ao sol nascer esperando por uma carta que sempre demora demais para chegar.

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Em uma das primeiras noites, quando as duas ainda estavam ocupadas fingindo que tudo estava bem, Hermione sente um peso humano cair por cima de suas panturrilhas. Antes de abrir os olhos, sua varinha já está apontada, um feitiço preso em seus lábios. Então, escuta um choro baixo. "Acabou, não acabou?", Gina diz. Há um desespero em sua voz que Hermione conhece: o desejo voraz por alguém que esteja disposto a dizer que eles jamais encontrarão sofrimento semelhante em suas vidas misturado à certeza de que o tempo não funciona linearmente quando o assunto é perda. "Nós derrotamos Voldemort. Estamos livres. Não é? Não é?".

Hermione escuta os sussurros das paredes de Hogwarts. Eles são heróis. Harry, Ron, Neville, ela e a garota chorando em seus braços ─ são todos heróis. Batalharam o mau desde a infância. Sobreviveram.

"Vamos ficar bem", ela mente. "Tudo está bem".

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somos todos heróisWhere stories live. Discover now