Seja um bom garoto, Miguel.
Se comporte, Miguel.
Seja educado, Miguel.
Sorria, Miguel.
Os quatro "S's" da minha vida, repetia isso toda manhã quando acordava e mesmo assim o céu parecia pintado de cinza. Hoje eu tenho mais uma consulta com a psicóloga nova da cidade, meu corpo pede para ficar na cama, mas os gritos de minha mãe me mandam tomar banho.
Antes que ela resolva subir faço o que ela manda e me jogo debaixo do chuveiro com roupa e tudo. Há dois anos fui estuprado por meu professor de matemática, há seis meses meus pais descobriram que eu tentava acabar com minha vida e me mandam para a psicóloga toda semana. Choro ao lembrar dos momentos de terror com meu professor, quando não fazia o que ele queria eu era submerso na piscina até desmaiar. Isso seria um trauma que eu levaria para toda a minha vida, tiro minha roupa e começo a tomar meu banho, enrolo uma toalha na cintura e encaro o espelho embaçado pelo vapor do chuveiro.
Era daquela forma que eu me via, embaçado, sem vida. Sempre fui forçado por meus pais para ser o melhor, dar o meu melhor. E foi por isso que fui na casa do professor aquela manhã de sábado, a pior de toda a minha vida. Passo um tempo na frente do espelho me arrumando e bolando um plano para acabar com minha vida hoje, mesmo que a morte não queira me levar ou eu seja apenas um puto de um fodido.
Já tentei me atirar na frente do trem mas o infeliz do maquinista conseguiu parar antes de me acertar. Tentei pular do prédio da minha escola e minha blusa enganchou em um ferro que eu nem sabia que existia, tentei me enforcar semana passada e a porra da corda arrebentou. Sou tão merda que nem a morte me quer, suspiro cansado passando a blusa por minha cabeça e bagunçando meus cabelos negros.
- Miguel, você está atrasado - fala minha mãe da porta enquanto me encara.
Guardo meu celular no bolso e a sigo até a cozinha, a mesa já não está mais posta para três, só resta o meu prato vazio. Sento como uma fatia de bolo e um pão com manteiga, escovo meus dentes e corri para o lado de fora onde o carro já estava ligado e meu pai esperava impaciente.
- Tente não se atrasar, estou gastando muito dinheiro com você, Miguel - murmura meu pai enquanto dirigia para o centro da cidade.
Não demora muito e já estamos de frente ao consultório da Dra. Mônica. Meu pai me deixou na frente e foi embora, respirei fundo antes de entrar naquele lugar, agora novo para mim. Estou na sala de espera, de cores verde e branca, algumas pessoas liam livros e outras revistas, eu brincava com um jogo de caça-palavras em meu celular.
- Miguel Scarlatti, a Dra. Mônica vai lhe receber agora. - Dei um sorriso amarelo e adentrei a sala clichê da doutora.
Repleta de livros,em três estantes de dois metros. Uma mesa,um poltrona e uma cadeira onde ela estava sentada. Dra. Mônica era loira e robusta,ela me parece uma boa pessoa,pena que eu não sou.
- Não sei o que te falaram sobre mim,mas não sou louco. Só quero deixar os meus pais livres de mim. Afinal ninguém merece ficar com um peso morto em seus ombros. - Ela deu de ombros e começou a anotar algumas coisas em sua pequena prancheta.
- Só quero ajudar você, Miguel, seus pais me disseram que você tenta suicídio. Por quê? - Dei meu melhor sorriso para ela que me encarou com uma cara nada boa.
- Não é da sua conta. Só me deixe ir embora. - Nenhum dos dez psicólogos que meu pai contratou me ajudaram em alguma coisa. Uns me olhavam com pena e outros com nojo.
- A porta está aberta, Miguel. - Ela apontou para a porta. - E a janela também. - Convite tentador.
- Obrigado, mas prefiro usar a porta. - Sorri para ela e fui embora de seu consultório decidido a acabar com tudo hoje.
Comprei uma faca de cozinha em um mercado alegando que seria para minha mãe que estava me esperando na esquina. Mesmo sem acreditar muito o senhor simpático me vendeu a faca. Andei tranquilamente até uma construção abandonada que eu costumava ficar sozinho chorando, afinal um jovem de dezesseis anos não tem muitos lugares para ir,e também sou proibido de beber. Subi para o telhado do prédio e me sentei no parapeito. Olhei a última vez para a cidade movimentada e pressionei a faca no meu coração,mas não entrou. Com raiva de mim mesmo comecei a chorar e com toda a minha força pressionei a faca no meu pulso,mas não me machucou. Joguei a faca de onde eu estava e gritei confuso, chorei, gritei, me joguei no chão, eu quero morrer.
Quando levantei a cabeça vi uma pequena menina sentada a minha frente com as pernas cruzadas, ela me olhava com ternura, seus cabelos eram castanhos e seus olhos azuis ela aparentava ter uns quinze anos.
- Por que está chorando? - Um sorriso brotou em seus pequenos lábios.
- Não lhe interessa - falei grosso tentando espanta-la,mas isso não surtiu o efeito que eu queria. Ela se apoiou sobre suas pernas e sorriu.
- Posso ajudar você? Você parece que precisa da minha ajuda. - Tiro as mãos do meu rosto e encaro ela como se fosse um louco.
- Você não pode fazer nada por mim - gargalhei, ela sorriu como se tivesse sido engraçado,mas não foi.
- Você ia se machucar com aquela coisa pontuda, que bom que eu cheguei a tempo de evitar. - Ela passa a mão por seus cabelos,percebi que ela estava com um vestido branco.
- Como assim evitar? - Pergunto perplexo.
- Eu segurei seu braço, acho que ele se revoltou contra você mesmo. - Ela não estava entendendo nada do que estava acontecendo aqui.
- Quem é você? - Fiz essa pergunta mais para mim do que para ela.
- Sou Evy, seu anjo. Não achou que deixaria você morrer certo? - Ela sorri, se levanta e se senta ao meu lado.
Anjo? Só pode estar de brincadeira comigo. Só pode. Respirei fundo e olhei novamente para ela, não parecia estar mentindo.
- Está bem. Mas porque não me deixa morrer? - Anjos devem saber que a vida sempre acaba,o que tem de errado em acabar com a minha mais cedo?
- Porque você ainda não está pensando direito. Pense em como seria o mundo se você não existisse. Miguel, você tem muito o que fazer antes de ir. Todos ficariam tristes,lembra que você sempre foi o melhor da turma? E que as meninas são loucas por você? - Ela riu. - Lembra da sua doce avó? Pense em como ela ficaria se soubesse que você se matou. Existem várias formas de lidar com a dor, Miguel, e essa não é a melhor delas. Não existe ninguém no mundo que não tenha passado por problemas. E com você não seria diferente. A diferença é como as pessoas administram essas situações, as maiores e mais influentes pessoas do mundo passaram por coisas piores e até quadros de depressão, mas venceram porque persistiram em continuar vivas. Você tem o destino em suas mãos agora. - Olhei para as minhas mãos,em uma delas estava uma faca e na outra um pedaço de papel escrito "Nova Chance", olhei para as minhas mãos e olhei para ela. - Acredito que fará a escolha certa.
A faca me parecia convidativa, lembrei de todas as cenas que me fariam querer usá-la e chorei. Cada momento passava em minha mente devagar como se em minha vida só existisse escuridão, pensei em escolher a faca mas então olhei para o papel em minha outra mão. Vi os momentos felizes com minha família, vi cada momento sorrindo como se o céu fosse feito de algodão doce e algo que a muito tempo estava perdido finalmente queimou em meu peito. Esperança. Fechei o punho que estava o papel e fechei os olhos.
Quando os abri estava em minha cama, deitado. Em uma manhã quente, olhei para a janela e percebi que há muito tempo não fazia isso. Tomei banho rápido e desci sem tomar café, peguei a bicicleta que estava encostada a bastante tempo e comecei a pedalar pelas ruas.
Não sei se isso foi um sonho ou foi realidade, mas eu estou disposto a romper meus limites e não me entregar a esse sentimento. Estou livre para decidir o meu destino, o quão fraco sou por tentar tirar de mim mesmo o direito de recomeçar, não sei se tenho um anjo da guarda, mas sei que tenho uma página em branco todos os dias assim que acordo e nela eu escrevo o que eu quiser. e eu cansei de escrever xingamentos, chegou a hora de jogar todas as folhas que já escrevi fora e fazer um novo diário.
Conto escrito por Biss_Luzes
VOCÊ ESTÁ LENDO
Ainda há esperança para as flores
ContoAcredite quando falamos que ainda há esperança para as flores. Setembro é o mês amarelo de prevenção ao suicídio. Pensando nisso, foi criado esse livro que reúne diversos contos que serão postados todos os dias durante esse período.