Eu estava pronta. A lâmina estava na minha mão. Os comprimidos estavam à minha frente, no chão do meu quarto. Mas algo me incomodava. Aquela maldita garota me olhava, julgando tudo o que eu fazia - ou, pelo menos, estava prestes a fazer.
Maldita ideia minha de me sentar perto do meu espelho.
Algo no meu reflexo estava diferente. Os meus olhos não estavam os mesmos. Ou seria mesmo a minha cara? Alguma coisa em mim tinha mudado. Tinha que ser isso. O meu reflexo tinha mudado. Eu não era a mesma.
- Por quê?
Era a minha voz. Mas eu não me lembrava de ter dito aquilo. E, apesar de não ter sido específica, eu sabia o que ela me perguntava.
- Eu apenas estou... farta.
Agora, o meu reflexo no espelho movia-se, e finalmente entendi que era ela que falava comigo. Com as pernas cruzadas, ela virou-se para mim, e suspirou.
- De quê? O que mudou?
- Eu estou farta de tudo. De ser zoada. De não ser valorizada. De não ser...
O meu reflexo parecia intrigado. Inclinou a cabeça, como se estivesse a tentar entender algo.
- Do que é que está farta, Andrea?
Senti uma lágrima a escorrer-me pelo rosto, e fechei os olhos para impedir mais de se seguirem a ela.
- De não ser boa o suficiente.
Penso que a minha reflexão me sorriu com compaixão. Não sei bem se o fez. Gosto de pensar que sim.
- Como assim? O que se passa, Andy?
Refleti por um pouco. Na verdade, nem eu sabia o que se passava. Tinha tanta coisa... Tudo estava numa grande batalha na minha mente, e ganhasse quem ganhasse, a perdedora seria sempre eu. Meus professores diziam que eu não era a mesma, a minha família, meus amigos. Até eu própria, que por muito tempo neguei estar diferente, aceitei que estava mudada. Como se me lesse os pensamentos, o meu reflexo fez-me uma pergunta que mudaria minha vida para sempre.
- O que mudou, Andrea?
O que mudou. Eu não fazia a mínima ideia. A minha aparência tinha mudado, sem dúvida. Mas isso fora depois. Alguma coisa em mim ficara diferente antes disso. A pressão das notas, as discussões na família, os olhares acusadores e rumores na escola... Tudo aquilo. Mas, mesmo sabendo o que tinha acontecido, ainda assim eu tinha dificuldade em apontar o dedo ao que mudara em mim. Eu apenas... mudara. Não sabia porquê. Ainda hoje não sei porquê.
- Sabes o que você está prestes a fazer, Andrea? Isso é algo que mostra fraqueza. Algo que mostra que não conseguiste arranjar nenhuma solução para o seu problema. Andy, você é uma pessoa forte. Eu sei isso porque, bem, eu sou você. O que quer que tenha mudado em você, não vale a pena se matar por isso. Não vai resolver nada. Eu sei que você vai arranjar uma solução. Eu... preciso que você arranje uma solução. Pense em toda a gente. Como acha que a sua morte os afetaria?
- Ninguém sentiria a minha falta.
A minha reflexão encostou-se à cama e atirou a cabeça para trás, e posso jurar que ela estava a chorar.
-É isso que você pensa? Andy, mamãe e papai ficariam arrasados! Seus amigos... Toda a gente ia ficar destroçada.
E, pela primeira vez em muito tempo, eu realmente pensei no que aconteceria no futuro. Pensei como seria o meu funeral. Todo o mundo chorando. A minha mãe a chorar desalmadamente. Não. Eu não lhe podia fazer isso. Eu não me podia fazer isso. Não era essa a solução. Havia outra solução. Tinha que haver uma outra solução.
Então, eu larguei a lâmina. Deixei de segurar as lágrimas. Pela primeira vez em tanto tempo, eu me senti livre, mesmo que apenas um pouco.
- Fique bem, Andy.
Conto escrito por -hellavator
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Ainda há esperança para as flores
Cerita PendekAcredite quando falamos que ainda há esperança para as flores. Setembro é o mês amarelo de prevenção ao suicídio. Pensando nisso, foi criado esse livro que reúne diversos contos que serão postados todos os dias durante esse período.