Capítulo 2

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Só no dia seguinte notei quantas aulas realmente partilhava com Mia. Nunca me ocorrera que já éramos colegas há dois anos, até ela se sentar atrás de mim e ser naturalmente irritante. Eram onze da manhã quando a minha primeira aula começou e a primeira coisa em que notei foi nos seus cabelos castanhos, realçados pelo laço vermelho vivo que ela tinha na cabeça. Cumprimentei-a, porque sim, eu era bem-educado, e sentei-me atrás dela, ao contrário do que tinha feito no dia anterior, porque sabia que, dessa forma, as hipóteses de a ouvir cantar músicas com dez anos eram menores.

O professor que dava aquela aula ainda não tinha chegado, portanto aumentei o volume da música nos auriculares e suspirei. Não tinha dormido muito bem, porque sempre que estava prestes a adormecer, a música que ela tinha cantado no dia anterior aparecia e eu apanhava-me a cantá-la. Foi o pior tipo de tortura que havia sofrido em todos os meus vinte anos, mas não podia julgá-la, porque a música era viciante. Já tinha passado por esse vício quando a minha prima era adolescente e eu era obrigado a ouvir aquela coisa - e muitas mais outras do género.

Não era como se eu odiasse completamente o estilo de música e, talvez, se não fosse toda a situação que se seguiu depois de ela ter começado a cantar, eu teria achado piada. Mas, infelizmente, nem eu estava de bom humor nem as coisas estavam a planear correr bem de qualquer maneira. Até o Jake, o meu melhor amigo e a pessoa mais positiva que conhecia, dizia que só podia ter sido o meu azar que causou aquilo. Uma caneta chegar ao teto e bater na minha cabeça, de entre todas as cabeças que me rodeavam, era puro azar.

Quando vi mais pessoas a chegarem ao auditório, retirei os auriculares dos meus ouvidos e arrumei-os na bolsa pequena da minha mochila. Retirei o meu caderno preto e reli as últimas notas que tinha feito em relação àquela disciplina – suspirei. Já só me faltava um ano da licenciatura e eu estava a aguentar-me bem na vida universitária, mas mal podia esperar que acabasse. Não gostava de rotinas e apesar de o meu horário não ser o pior, já estava cansado e ainda faltava um pouco até o primeiro semestre acabar.

- Come here, rude boy boy, can you get it up; come here, rude boy boy, is you big... porque é que tu nunca me deixas acabar as músicas? – questionou, quando o seu olhar encontrou o meu.

- Eu estava calado! – defendi-me, sentindo-me ofendido. Agora ela só queria causar discussão.

- É verdade, mas estavas a olhar para mim com esse olhar.

- Tu estás à minha frente, Mia. Quem olhou para a outra pessoa foste tu para mim. – cruzei os braços e deixei-me relaxar na cadeira, sentindo a vitória da discussão a invadir-me.

Gostava de ter razão, quem me podia julgar?

-Olhei porque as palavras rude e boy me fizeram lembrar de ti. – sorriu-me largamente. Levantei uma sobrancelha, chocado por ela me ter tentado insultar. – Nem é um insulto, pois não? Quero dizer...tu hás de saber que és rude.

- E o resto da música, também te lembrou de mim? – inconscientemente, pisquei-lhe um olho. Ela estremeceu por alguns segundos, mas depois recompôs-se; tive que rir. – Eu ia aplaudir-te pelo insulto, na verdade, mas tinhas que estragar tudo.

- Dizes isso como se eu estragasse as coisas muitas vezes.

- Estragaste a minha paciência ontem, só isso. – comentei, embora a rir.

Ela observou a minha postura, para saber como responder. Observou o que conseguia do meu corpo tapado à metade pela secretaria e voltou a focar-se na minha cara. Durante esse tempo, mantive a mesma expressão divertida, mas aproveitei o tempo para tentar encontrar a íris nos seus olhos negros. Poucos segundos depois, mesmo quando ela piscou os olhos, encontrei. Senti-me vitorioso. Na realidade, toda a sua pausa acabou por ser inútil, porque depois de talvez meio minuto de silêncio, ela escolheu não dizer nada. Escolha sábia, pensei eu.

Cair e LevantarOnde histórias criam vida. Descubra agora