Era inverno e eu sentia cada vez mais sinais de neve em cima do meu sobretudo preto enquanto andava sozinho pelas ruas de Nova Iorque. Mais um dia de trabalho exaustivo e mais um dia de nervosismo no escritório. Por que eu não conseguia mais ser o mesmo de antes? O cara alegre, cheio de amigos, que sempre estava de bom humor? Esse Robert há tempos não existia mais. Todas as sextas – feiras gastas em bares de esquina e muita cerveja com os caras do trabalho agora eram lembranças distantes, por mais que nosso último encontro tivesse acontecido há pouco mais de dois meses.
O relógio marcava 21:00. Dali a meia hora chegaria meu trem e a única coisa que eu conseguia pensar era em chegar em casa, tomar um banho gelado e me jogar na cama sem ao menos comer. Ultimamente eu não conseguia ter ânimo nem para pensar no jantar. Cheguei à estação e me apressei em pegar um banco para sentar do lado externo, já que os outros já estavam ocupados. Comecei a observar a neve que caia livremente pelo espaço, e finalmente com um tempo pra pensar, percebi o quanto eu odiava minha nova vida. Levantar todos os dias e me deparar com um homem com enormes olheiras e barba por fazer ao olhar no espelho. Deixei cair um, dois, três, quatro, cinco, seis flocos de neve na palma da minha mão, como eu costumava fazer quando criança nos dias frios daquela cidade com minha irmã, enquanto esperávamos ansiosos por nossos amigos para brincar, sentados nas escadas de madeira frente à porta de nossa antiga casa.
Minhas pernas se mexiam inquietantemente enquanto eu esperava o horário certo para ir. Uma mulher se sentara ao meu lado, e não me deixei importar se estava a incomodando ou não quando percebi que ela me olhava de soslaio. Passei minhas mãos em meu cabelo me sentindo perdido. Eu seguia a rotina que fora tão cautelosamente programada por mim desde muito cedo em minha vida para um futuro perfeito: Tomar café, me aprontar, sair de casa 8:15, chegar ao trabalho depois de 45 minutos de metrô e caminhada, trabalhar até 20:30, voltar para a estação e consequentemente pra casa. Era tudo tão igual, tudo repassado cansativamente em minha memória, podia refazer toda minha rotina de olhos fechados e ainda assim me sentia perdido... Apenas um zumbi à base do café expresso da padaria 24h da rua ao lado.
- Meus olhos já foram como os seus. Sem rumo. Não se preocupe, sei como você se sente. Se te conforta, vai demorar, mas vai passar. – Ouvi então uma voz feminina e percebi a mulher ao meu lado se direcionando a mim. Seu olhar era distante e acendia um cigarro que pendia em seus lábios. – Se sente sozinho em meio à multidão, como se tivesse perdido algo de muito importante e ainda não descobriu o que. Aborrecido, triste, aflito. – riu baixo, tirou o cigarro de seus lábios e soltou a fumaça que prendia dentro de sua boca. – Eu sei como é horrível a sensação de ter de guardar um sentimento tão ruim para si, se quiser conversar, tenho vinte minutos. Por que se sente assim?
Ela usava jaqueta e calça de couro preta, uma touca da mesma cor, um tênis de cano alto vermelho da nike e tinha fones em seus ouvidos. Ouvia música no último volume, provavelmente hip hop se eu ainda conseguia distinguir tipos musicais. Sua maquiagem era pesada e aparentava ser do dia anterior, mas ainda assim era possível ver seus traços delicados. Apesar de ser uma completa estranha, de alguma forma eu me sentia bem com ela ali.
- Não é como se eu ainda fosse a mesma pessoa – Falei, desabafando. – Meu trabalho tem acabado comigo. Levei um pé na bunda da minha ex porque mal nos falávamos, eu praticamente nem tenho amigos mais, e mal consigo dormir. – Suspirei cansado. – Trabalho em um escritório de advocacia a duas quadras daqui, sou contador, e lhe garanto, é muito estressante. – Ela soltou uma risada seca, se voltou para o nada e disse:
- Você pode não estar se encontrando agora, mas sabe quem é. Não precisa perguntar a cada esquina se as pessoas te conhecem, e lhe garanto, isso é bem pior. – Ela levou a mão que segurava o cigarro à boca enquanto a outra arrumava sua franja caída para o lado direito de seu rosto, o que facilitou minha visão para uma cicatriz aparentemente recente perto de sua sobrancelha. – Tudo que sei é meu nome e minha idade.
- Você sofreu um acidente? Você não me parecia estar machucada. – Consegui falar depois de um tempo ainda atônito com sua marca na testa. – Se quiser posso pagar um táxi para te levar a um hospital. – Ofereci. Ela balançou lentamente a cabeça em sinal de negação, com o olhar ainda distante.
- Eu saí de um hospital há quatro meses, fruto de um acidente de carro, apenas com a roupa do corpo e alguns dólares. – Ela começou com pesar. - Tenho sobrevivido com eles e roubando, apesar de não me orgulhar muito disso. Por isso, pra me manter, consegui um emprego na Flatbush Farm Green do outro lado da rua. Foi difícil por não ter nenhum documento, e que na minha ficha não constava o nome de meus pais ou de algum parente. Apenas a conta paga e nada mais. Mas todos da Flatbush sabem da minha história e estão me ajudando a conseguir uma segunda via de todos os documentos. Eles são minha família agora. Me desfiz de tudo que roubei, menos esse aparelho de música. – Ela disse me mostrando o mp3 que levava no bolso de sua jaqueta. – Ele faz meus dias menos solitários. A cada dia é uma nova aventura, o que comer, onde dormir. A minha única certeza é o Brooklyn. Essa é minha vida agora, até achar alguém que me conheça.
- Você não consegue se lembrar de nada fora esses quatro meses? Eu posso te ajudar a encontrar sua família, se quiser. – Disse, afinal, eu precisava tentar ocupar minha cabeça com outras coisas para ver se saia da minha mesmice de sempre. Unindo o útil para ela ao agradável para mim.
- Só me lembro do vício pelo cigarro. Mas de qualquer forma, eu não tenho mais interesse em achar minha família. Eu tenho uma nova família e amigos agora, são as únicas duas coisas que sei, afinal, tudo em minha vida é incerto. – Ela disse e suspirou. Olhou na direção do trem que tinha acabado de chegar e se levantou. – Bom, esse é o meu trem. Obrigada pela conversa. – E então, pela primeira e última vez, a vi sorrir enquanto ela dava mais um passo incerto em direção ao seu futuro. Um sorriso triste, mas ainda sim um sorriso.
Ela foi se afastando lentamente, sem olhar para trás. Ela podia ter 1001 motivos para ser uma pessoa fria e má, mas ainda assim tinha esperança e era confiante, enquanto eu apenas sentava e reclamava da minha vida, sem ter nem metade dos problemas que ela vinha carregando por meses. Ela tinha a esperança que eu não tinha e a confiança que eu não tinha mesmo estando no fim da linha. Me peguei imaginando para onde ela iria e se algum dia conseguiria encontrar alguém. Eu verdadeiramente torcia para que sim. Não demorou muito e meu trem também chegou, me mostrando que agora eu voltaria à minha rotina maçante de todos os dias. Mas, qual era o problema nisso afinal? Se eu me sentia tão incomodado, porque mantê-la assim? A vida era minha, e apenas eu podia mudá-la, mais ninguém. Encontrar alguém quem sabe, casar, mudar de emprego, ter filhos, comprar uma casa maior. Eu não podia sentar e esperar. Ela tinha aberto os meus olhos com uma conversa de poucos minutos. Uma completa estranha que ao menos sei o nome. E eu me pergunto se algum dia vamos nos encontrar de novo. Eu espero que sim. Em algum lugar do Brooklyn.
FIM
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Somewhere in Brooklin
RandomE eu me pergunto se algum dia vamos nos encontrar de novo. Eu espero que sim. Em algum lugar do Brooklin. Baseada na música de mesmo nome do Bruno Mars.