Terceiro capítulo – A vida em Preto e Branco
~oOo~
São Paulo
A taça de vinho pela metade parecia refletir sua vida, também pela metade. E qual seria essa metade? Trinta anos é a metade da vida? Deveria se comparar à uma taça de vinho, por favor... Às vezes nem parecia mulher feita, decidida e dona do próprio nariz, pois nesses momentos de indagações desmedidas mais lembrava uma criancinha arteira e curiosa. Suspirou. O peso de beber uma taça de vinho logo pela manhã caindo em seus ombros, contudo, ainda podia apelar para a ciência e dizer que vinho faz bem à saúde – ocultando o fato de beber além da conta e começar logo cedo e terminar tarde. Estava impecável. Mais uma manhã sob o céu de São Paulo, a cidade cinza.
Seu apartamento localizado perto da AV. Paulista a deixava no topo do mundo, pela janela conseguia observar tudo, pessoas indo e vindo, e quase podia alcançar seus problemas. Desde menina tinha a mania de observar os outros e criar histórias para os desconhecidos, porque queria ouvir suas histórias, escutar sobre seus problemas e aconselhar: gostava de colher os infortúnios alheios, era o seu alimento. Isso e o vinho. Não fora surpresa se formar como a primeira da classe em psicologia e se especializar em terapia de casal, com métodos poucos ortodoxos, tenho dito. Sophia era fascinada por casais. Sempre foi.
Observar os cinco casamentos fracassados da mãe foi o combustível que precisava para ajudar a atear fogo numa particularidade que já nascera consigo. Ser terapeuta de casais lhe proporcionava um êxtase inexplicável, era como se ao colher os problemas deles pudesse plantar o seu jardim perfeito para um dia, quem sabe, convidar alguém para passear nele ao seu lado. Com mais clareza, observava o que estava de errado nos relacionamentos para não repetir quando fosse viver o seu próprio, mas quando seria isso? Seu último namoro acabou mal, com palavras de ofensa e porta batendo, além de bloqueio nas redes sociais.
Era assim tão odiosa?
Pegou sua bolsa e saiu para trabalhar, deixando para trás sua taça e seus medos. Daquela porta para fora precisava exalar segurança, confiança, embora ainda existisse todas as inquietudes pairando sobre si. O consultório não era longe e podia ir andando tranquilamente, dividia o espaço com um dermatologista e pouco falavam um com o outro, achava o sujeito estranho, sempre de cabeça baixa e a voz meio atarracada. Ele tinha seus segredos e, estranhamente, ela não se sentia curiosa em descobrir sobre eles. Fazendo um trajeto diferente, ignorou a padaria onde era de lei tomar seu cafezinho e entrou num Sebo ali perto, aspirando o maravilhoso aroma da mistura de livros novos e velhos.
Razoavelmente disposta para encarar o dia, inocente, mal sabia o que o destino reservava para si...
~oOo~
Rio de Janeiro
Vermes devorando sua carne enquanto estivesse mergulhando na inércia em nada parecia apetitoso, mas o pensamento vagueava no inevitável, mesmo que tivesse o conhecimento sobre outras opções, nada parecia mais natural que ser enterrado e então o ciclo seguiria sem interrupções. Mas de qual ciclo se tratava, afinal? Desde que não fosse posto para descansar numa gaveta ou fosse cremado como lixo numa incineradora, estava tudo bem, somente a ideia de ser colocado para repousar até despertar para a nova vida em uma gaveta, por Deus, já lhe arrepiava os pelos da nuca, assim... Como poderia voltar? Se voltasse, no precipício do infinito, faria tudo igual; mesmos erros e mesmos acertos, esmurrar ponta de faca até que não era tão mal. Para quê mentir - para si mesmo - quando sabia que, apesar de inconstante em toda a metamorfose que o tornava um ser mutável, nunca mudaria simplesmente porque o comodismo de repetir as mesmas ações já o tinha puxado e prendido na teia do falso contentamento pessoal? Descontente, agora e sempre, estava lá, aqui, para quem quer que fosse a precisar, mas ironicamente ninguém estava para si enquanto por cá algumas lágrimas riscavam sua face em anúncio ao choro que arranhava a garganta da mesma forma que gatos travessos arranha o papel de parede de algum apartamento localizado na esquina da depressão com os números da ansiedade. Compreende? Tudo isso para nada e, no fim, tudo sendo realmente nada.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Amores em Aquarela
General FictionEncontros e desencontros, Rio de Janeiro e São Paulo - ponte aérea para o acaso. Pessoas interligadas, incapazes de saber o final da peça onde são meros coadjuvantes, sem espaço para protagonistas ou figurantes, coadjuvantes da própria história. Ima...