O Despertar

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Não sabia como explicar, mas seu organismo pressentia a manhã chegando. Não como algo que estende um varal de oportunidades; ou mais um dia pesaroso em um existência sem sentido. Apenas sentia o torpor da vida lá fora, e isso o despertava. Antes, acordava cedo para algum exercício ou prestar continência a alguma autoridade que invadia os locais de dormir por puro prazer em relembrar aos subalternos sua posição. Os homens, mesmo os bons, podem ser maus; sem que matem ou roubem, mas quando guiados por um tipo de maldade que faz outro sofrer em um nível tolerável. Osvaldo trabalhava para alertar ou conter as pessoas de ultrapassarem limites legais, usando-se de medidas incontidas. Porém, permitidas. Aquele seria mais um dia asfixiante e quente. O calor era uma forte e inquietante presunção para tudo e todos. Os primeiros raios de sol atingiam o outro lado da casa, mas ele sabia que o dia amanhecera.

Acordou com o antebraço esquerdo embaixo do dorso. Ergueu-se sem perceber a dormência dos músculos paralisados, de forma que seu corpo pendeu para o lado desfalcado de apoio. A cabeça acompanhou o balanço, fazendo o homem despertar como se estivesse em uma nau flutuando em uma tempestade no oceano. Finalmente, o corpo o fez perceber a paralisia temporária. Então, esticou o braço, girando-o sobre seu eixo, a impulsionar sangue para o local adormecido. Nesse momento, ouviu um barulho vindo de fora, próximo à janela. Fixou os olhos em um Magnum 44, prata, sobre o criado-mudo; em seguida, levantou-se. Apanhou o celular, conferiu as mensagens e e-mails: nada relevante ou urgente. Sentiu a garganta seca, enquanto caminhava para o banheiro. O cachorro arranhou outra vez a parede pelo lado de fora e latiu, um latido abafado. Ele girou a torneira da pia, enxaguou a boca e cuspiu; a língua grudava aos cantos, em contato com o muco ressecado. Abaixou-se novamente e ingeriu goles generosos de água. Sentiu seus órgãos despertarem.

A vizinha do lado esquerdo batia panelas, a preparar o almoço para o marido, que saía cedo e voltava tarde. Nem sempre por força do trabalho; e mais pela ardência da cachaça servida no bar do José no fim do quarteirão. Osvaldo não conheceu uma noite em que o casal não incomodasse a vizinhança com os seus desentendimentos, forçados pelo horário em que o marido chegava em casa ébrio; e a esposa esperava-o, sóbria. Na maior parte das vezes, as brigas se silenciavam vinte minutos depois. Em outras, apenas com o ensurdecedor barulho da sirene de uma solitária viatura cortando as ruas do bairro para atender a um chamado de violência doméstica. A mulher, com o contorno do olho arroxeado; o homem, com a blusa esgarçada, a cambalear as pernas e nas palavras dirigidas aos policiais. Osvaldo, muitas vezes, quis interferir e usar de sua autoridade policial para impingir medo ao casal desordeiro, para o bem de todos. Mas esse poder estava impregnado em cada tecido de sua farda, que, naquele bairro só poderia ser vestida por homens ou mulheres estranhos. Ele jamais seria um policial ali; e, nesse caso, para o seu próprio bem.

Herdou a casa de herança de uma tia, estéril, por quem ele não nutria tanto amor para tanto, mas não o desqualificou, por ser o único que a visitava aos domingos, antes de iniciar sua carreira militar. Era uma região de alto índice de criminalidade, cujo renome fazia-a aparecer diariamente em páginas, boletins e programas policiais. Mas, de todos os tipos de crimes praticados por aquelas redondezas, o mais temido era o que impedia pequenos delinquentes de atuarem: a justiça paralela. A que levava segurança, energia, gás de cozinha, Internet e tevê a cabo ao lar das pessoas. Tudo em troca de pequenos favores, fiéis e corriqueiros. Ali, o Estado atuava sem farda. O mínimo que lhe era permitido fazer era acompanhar pequenos imbróglios domésticos, ou estar lá como se não estivesse. Porém, para Osvaldo, era uma casa. O seu lar, onde suas preocupações do trabalho se encerravam e onde poderia descansar, chamando-o de meu. Saíra do aluguel, e muitos problemas tornam-se toleráveis quando as contas do mês não fecham.

Osvaldo vestiu uma bermuda e caminhou até a cozinha sem ligar as luzes pelo caminho. O ambiente estava escuro, as cortinas caindo sobre as janelas fechadas; as portas cerradas e móveis posicionados para impedir a propagação da luz. Encheu um vasilhame de alumínio em baixo da torneira e o recostou sob a boca do fogão. Fez um café amargo e forte. Odiava o resultado desse ato culinário, mas nunca alterou um grama de açúcar ou pó. Mesmo quando se convencia de que fizera algo diferente: amargo e forte. Abriu a geladeira, apoderou-se de uma caixa e despejou-a sobre o copo. Café com leite era mais tolerável. Comeu algumas fatias de pão lambidas de manteiga. Logo depois, foi ao quintal, segurando um saco de ração canina. Talvez, não o cheiro de seu dono, mas o pressentimento de que a hora de se alimentar chegara, fazia o animal atiçar-se sobre as patas e disparar na direção de Osvaldo, que o repelia com os pés, a tentar encher o recipiente com aquela paga por mais uma noite em segurança.

O animal foi levado àquela residência como um item de segurança. Osvaldo enfatizou tanto essa característica que lhe dera um nome apenas aos dois anos; e em função de uma pergunta, em momento de lazer e curiosidade do sobrinho, "Tio, qual o nome do seu cachorro?". Ele hesitou e disse, "Cérbero". "Que nome feio, tio, cérebro é pra ficar dentro da cabeça". Ele não quis corrigir nem explicar o nome, que, aliás, usara ao acaso, mas definia bem o que esperava do animal. A verdade é que a segurança do seu lar também se fazia, e principalmente, pelas mãos de quem ele tentava impedir que pudesse agir como justiça. Essa ideia o inquietava, diariamente.

Cérbero enfiou o focinho dentro da vasilha e permaneceu, enquanto seu dono se afastava. Osvaldo retirou o celular do bolso e conferiu as horas tão-só por hábito. Ligou a tevê e sentou-se ao sofá, olhando fixamente para a tela. O jornal apresentava uma notícia relacionada a mais uma morte naquele bairro onde ele morava. Um rapaz foi executado a tiros, a algumas quadras de sua rua, em um matagal fechado. "Suspeita-se de que o menor estivesse cometendo pequenos delitos nas redondezas e foi apanhado pelo tráfico local", emendou a âncora do jornal antes de chamar a próxima notícia relatando mais uma ação da polícia federal contra a corrupção no meio político do país. Ele desligou a tevê enquanto a reportagem era chamada e pensou, "Esse país está todo errado".

Concluiu depois que naquele dia de folga nada o abateria nem permitiria que o mundo lhe roubasse a paz. Procurou nos últimos números ligados o de Raquel, sua ex-mulher, mas ouviu apenas a mensagem da caixa postal, como em tantas outras vezes naqueles dias. Então, se certificou de que mais nada tiraria sua tranquilidade, nem ele. Peregrinou pela casa, levantando as cortinas e abrindo as janelas. Percebeu que o descuido com a limpeza estava demasiado aparente. Reuniu alguns produtos de higiene doméstica, baldes, rodo e vassoura. Limparia e organizaria tudo quanto permitisse sua vontade, que se quebrantava logo após varrer e limpar o banheiro.

Desta vez, seu ímpeto não precisou se abater: recebeu uma ligação. Fixou os olhos na tela lentamente, esperando que o acaso o agraciasse com o número e o nome de quem esperava. Os dedos vacilavam, esperançosos e conscientes dos resultados anteriores. A espera por si só nunca quer alcançar. Talvez, fosse ela, como em um daqueles momentos em que supomos que algo se dobrará à nossa vontade. Mas não era, como em tantas outras vezes. E ele nem se frustrou ou sentiu qualquer coisa, apenas postergou algum sentimento para o instante em que de fato houvesse melhores chances de ela poder ligar ou não. "Osvaldo, um policial foi morto ontem à noite, do outro lado da cidade. Homem negro, de meia altura que atende pelo codinome 'Palhaço'. Capturem-no ". Entendido, comandante, vamos atrás desse defunto".

Retirou de um fundo falso do guarda-roupa sua farda, envolta em um saco preto, colocou-o no banco traseiro do veículo e se jogou à frente do volante. Cérbero apareceu pelo corredor lateral de fora da casa, ciente de sua principal tarefa na ausência iminente de seu dono. Latiu uma vez, enquanto mantinha o olhar fito no automóvel. O portão aberto não o tentava; pelo contrário, apenas o lembrava de seu dever. Sem notar, Osvaldo colocara sua arma oficial à cintura. Embaixo do banco, havia uma outra encarregada de resolver assuntos não oficiais. Apontou o carro na saída da garagem, a observar o fluxo de veículos à direita. O vizinho se despedia da mulher ao lado da mureta de sua residência. Ouviu o barulho do motor de um carro e virou-se, estendendo a mão no ar, "Bom dia, seu Osvaldo. Vamos à luta!

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⏰ Última atualização: Sep 30, 2017 ⏰

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