Capítulo 1 Último dia de aula

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  _Senhorita Carly. -senti alguma coisa penetrando meu sonho. Uma voz... -Senhorita Carly! -uma voz insistente e doce... -Senhorita Carly! -e então um leve empurrão.

  _Oi, Maria. -abri os olhos e percebi Maria, nossa empregada que havia se tornado uma grande amiga minha. 

  _Dona Carmen mandou chamá-la para que não perca o último dia de aula.

  _E que horas são? -esfreguei os olhos e torci o lençol no corpo.

  _São pouco mais de 7 horas, senhorita. -disse e saiu do quarto levando minhas roupas que estavam no chão.

  Meu Deus, 7 horas?, pensei. Levantei correndo e fui para o banheiro. Tomei um banho morno para acordar. Vesti o uniforme quente do Colégio San Martín e desci as escadas de dois em dois degraus, ás pressas.

  _Bom dia Carly! -ouvi a voz suave, porém imponente, de minha mãe logo que entrei na cozinha. -Vejo que temos uma aluna atrasada bem no seu último dia de aula. 

  _Desculpe mãe. 

  _Tudo bem querida. Coloque Caroline no ônibus daqui á 15 min, ok? -assenti enquanto bebia meu achocolatado e mastigava um pedaço de bacon. -Preciso ir mais cedo pro trabalho hoje. Beijo! -dona Carmen, secretária de uma das maiores empresas da cidade, a CIL (Corretora de Imóveis de Liodora), atualmente separada do pai de Caroline e meu padrasto, porém feliz e decidida. Mulher dedicada e trabalhadora, sustentando suas filhas desde o falecimento de papai quando eu tinha 8 anos. Desde então, por 8 anos, não depende de marido nenhum.

  Terminei meu café e subi para terminar de me arrumar. Passei no quarto extremamente rosa de Caroline (bem, ela tinha só 6 anos) para chamá-la. Não a encontrei em canto algum e, quando abri seu guarda-roupa, lá estava ela. Escondida e enrolada nos casacos centenários de mamãe. Suspirei de alívio, até perceber uma coisa, casacos de lã não tem manchas marrons e doces.

  _Caroline! Você comeu meus chocolates outra vez? -peguei-a no colo e a coloquei no chão. - Olha sua roupa! Vai se lavar. Já são 7h 10min. Quer atrasar todo mundo? -ajudei-a se limpar e a troquei.

  Desci batendo os pés com força na escada. Maria deve ter percebido o que aconteceu, pois logo subiu com panos de limpeza. Despedi-me dela e coloquei Caroline no ônibus. Já eram 7h 20min, minha aula começava às 7h 30min. A escola era a quatro quarteirões dali. Tive que correr.

  Quando cheguei, o sinal estava tocando. Entrei na sala 9 no andar de cima o mais rápido possível e, mesmo assim, fui xingada.

  _Senhorita Carly, está 3min atrasada. -eu odiava aquela voz irritante e desdenhosa da professora Aline Martinez. -Uma aluna que vai se formar daqui a alguns dias tem este tipo de comportamento?

  _Não, senhora. -nesse momento segurei para não rir. Grudado em suas costas, estava um bilhete "Odeio todo mundo e sou rabugenta". A sala não fez como eu e logo todo mundo estava morrendo de rir.

  Professora Aline se virou imediatamente gritando com a sala coisas do tipo, Fiquei quietos! Que desrespeito!, e então saiu da sala. Foi assim que passei as últimas horas de estudo no  Colégio San Martín.

  O sinal tocou pela última vez para os estudantes do terceiro ano e os corredores estavam alvoroçados. Alunos passando trotes nos mais novos e velhos amigos se despedindo aos prantos. A pessoa que eu procurava apareceu na minha frente rindo igual uma doida, como sempre foi.

  _Lea! Que bom te ver. -abracei-a arrancando seus fones de ouvido.

  _Oi Carly! -disse recolocando os fones na orelha novamente. -E os planos para o verão?

  _Então, mamãe quer ir pra praia. Vamos? 

  _Ai amiga, você sabe que eu adoraria. Mas ainda moro com meus pais então... vou ver com a mamãe tá? -assenti e arrumei a mochila nas costas. Ouvi a buzina de Seu João que sempre me pegava depois da aula. -Até mais amiga.

  Despedi-me dela e fui até o carro. Seu João, como sempre, estava sorrindo para mim dizendo: Como foi seu dia? , como sempre. Para ele eu sempre iria ser a menininha que ele buscava na escola. Sorri para ele de volta e entrei no mesmo Fiat que me buscou durante anos da minha vida colegial.

  Chegando em casa, pouco antes das 16 horas, encontrei minha mãe sentada na mesa de jantar conversando com um de seus clientes. Coloquei meu material no canto da sala e lhe dei um beijo na bochecha. Peguei um prato que estava pronto no balcão contendo torradas, um pedaço de torta de maçã e pão francês. Sentei-me ao lada da mamãe e comecei a comer.

  _Mãe, como vamos para praia esse verão, posso levar Lea comigo? -perguntei assim que o telefone havia terminado.

  _Pode sim, querida. -segurei para não agradecê-la de boca cheia, pois isso a irritava muito. Se eu fizesse isso, ela diria: Nessa casa tem educação. Ninguém fala de boca cheia por aqui. -Só a avise que vamos esse final de semana, ok?

  _Sim, mãe. -peguei o celular e liguei no mesmo instante para Lea.

  Minutos se passaram e nada. Lea não atendia ás ligações e não as retornava. Comecei a ficar preocupada, recusar ligações uma da outra era uma coisa proibida. Teria de haver um motivo óbvio para isso. Avisei mamãe aonde iria e chamei Seu João. 

  _Aonde quer ir querida? -ouvir a voz de Seu João era ótimo pra mim. Era uma voz suave e doce que acalmava e trazia conforto. Era como um avô que eu nunca tive.

  _Para casa de Lea, Rua Doutor Francisco, n° 367. -ele assentiu e girou a ignição do Fiat. 

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  Chamei, toquei o interfone várias vezes. Impaciente, liguei mais uma vez para Lea enquanto andava em círculos pelo jardim da frente. 

  _Alô? Carly? -percebi o cansaço e a voz fanha dela. Alguma coisa estava errada.

  _Sou eu sim, Lea. O que está acontecendo? Você não me atende à horas? -parei de andar em círculos e me sentei no degrau da porta, preocupada. 

  _É a minha mãe Carly... -ouvi ela chorar. -Estamos no hospital São Timóteo. Ela está muito mal.

  _Tudo bem, estou indo para aí. -chamei Seu João e indiquei o local.

  A mãe de Lea sofria de um tumor no pulmão desde o ano passado, mas sempre em tratamento. Várias vezes foi levada ao hospital com urgência. Pode ser que ela não aguente mais, disse o médico da última vez. Desta vez, tinha sérias duvidas quanto a isso.

  Quando chegamos na portaria do hospital, pedi a Seu João que esperasse no carro por alguns minutos. Entrei pela porta automática e me deparei com Lea aos prantos, sentada em uma cadeira estofada de espera. Seu rímel estava todo borrado e lágrimas insistentes e dolorosas corriam pelo seu rosto. Senti um aperto no coração. Fui até ela. Envolvi-a em um abraço caloroso, sem dizer nada.

  Ficamos assim por um tempo, até ela se soltar e dizer que precisava ir ao banheiro. Aproveitei esse tempo e fui até a recepcionista. Perguntei o que havia acontecido. Queria não ter escutado. O pulmão da senhora Adriana parou. Ela está respirando apenas com tubos e, por pouco tempo, disse ela. Assenti e me sentei novamente. Lea sabia disso? Se não, e quando soubesse? Pensei nos velhos tempos, quando tínhamos 12 anos e brincávamos de pega-pega, mamãe e filhinha, das nossas briguinhas fúteis e rápidas, de Adriana nos chamando para tomar café ou fazer um bolo ou cookies. Lea ficaria arrasada. O laço entre as duas era muito forte, não como qualquer mãe e filha, como duas melhores e verdadeiras amigas. Um espaço que eu nunca poderia preencher.

  Achei uma péssima hora para dar a resposta a ela quando a vi virando o corredor ao meu encontro. Apenas a abracei novamente e sussurrei no seu ouvido:

  _Vai ficar tudo bem. -beijei-a na testa e limpei suas lágrimas. -Tudo bem... -Voltei a abraçá-la. Não está nada bem, pensei. Mas ela não precisava saber disso, pelo menos por enquanto.




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⏰ Last updated: Sep 16, 2017 ⏰

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Princesa por AcasoWhere stories live. Discover now