A chuva caía naquela noite. As plantas limpavam-se com o suor das nuvens que escorriam sobre elas. Os postes, de certas ruas, já não se acendiam mais, deixando que o breu dominasse. Os fortes sopros da natureza oscilavam as garras das árvores, arranhando as janelas e paredes das casas, trazendo desconforto aos que tentavam sonhar. Mas mesmo com o incomodo, os cansados fechavam seus olhos e concentravam suas mentes num profundo nada. Num escuro e sozinho nada. O único momento em que podiam se dizer estar em paz. Em que não necessitavam se preocupar com nada ou com ninguém, apenas desligar-se do mundo e sonhar com um nada. Há quem chame noites assim de inspiradoras, ou até "obras do nosso queridíssimo Deus", o que, apesar de estranho, trata-se de uma verdade. Quantas histórias foram escritas em momentos como esse? Quantos assassinos nasceram e mataram em momentos como esse? Em noites sombrias e chuvosas, em que a única que reina, é a escuridão.
Já para alguns, momentos como esse são sinônimos de terror e medo. Portas abertas para que se crie um caos em nossas mentes, produzindo imagens e presenças indesejáveis a nosso redor. Fazendo com que o nada se torne o insano. Que pesadelos se tornem reais. Não se sabe o que há no escuro. Ou o que não há. Sabe-se apenas que o medo existe e que muitas vezes, o que o traz, também. Os barulhos durante a madrugada, nos telhados, na cozinha. A presença de alguém a observar, ou vozes a lhe chamar, podem realmente terem vindo do silencioso nada, ou talvez sejam apenas frutos de uma mente insana e doente. Cabe a você enxergar o ilusório. Ou tapar os olhos para o real. Esses eram os pensamentos que ecoavam na mente de Thomas. O que havia naquele escuro do quarto? Ali, naquele cantinho vazio ao lado do guarda-roupas. O garoto via, então, de fato, havia algo ali. Mas pensando bem, está tudo tão escuro, tão vazio. Esquece, não há nada, apenas o breu que paira no cômodo. Mas a silhueta é tão visível. As respirações baixas, mesmo com os sons da chuva, são audíveis. Tem alguém ali sim! E estava a observar Thomas. Sorrindo para o garoto e lhe fazendo gestos com as mãos, mas sem se aproximar. Porém, isso não impedia que Thomas entrasse em pânico. Mesmo longe, o homem do escuro, ou mulher, ainda estava perto. Thomas podia senti-lo, sentado a seu lado, prestes a fazer alguma coisa ruim. Não fazia ideia do que, talvez o ferir, ou o sufocar até a morte. Logo, esses pensamentos se tornaram gritos agudos e indesejáveis, com os trovões que os céus enviavam a Pedras Claras. As luzes foram acendidas e uma figura caduca adentrou-se no quarto, assustada.
- O que aconteceu? – Gritava a senhora. Seus cabelos, negros como os céus sem estrelas, acompanhado de inúmeros fios brancos, refletiam a luz da lâmpada que o iluminava – Tom, o que aconteceu?
Todos encaravam Thomas com espanto, confusos com o que acontecera. Os garotos, que dormiam nas camas ao lado, levantaram rapidamente com o esganiçado grito do menino. Aqueles que não despertaram com o som, logo abriram os olhos com a luz que voltava a seus fatigados rostos.
- Ali, tinha alguém ali! – Dizia Thomas, apontando seus finos dedos para o vazio do cômodo.
Logo, toda preocupação e espanto se ofuscaram e a decepção subiu ao pódio. Não era a primeira vez que Thomas teria feito tal ato. A alguns dias, o orfanato fora numa visita à Exposição de Artes Juvenis (EAJ), no centro da cidade e a instabilidade do garoto não fora diferente. A monótona palestra a respeito da importância da arte na vida das crianças, fora interrompida pelos inusitados gritos do menino. Ele dizia ter sido arranhado por alguém que lhe queria fazer mal. O que, com muita certeza, era improvável. Por que alguém iria querer o mal de um órfão pobre e humilde do Nascente Azul? Sem contar as inúmeras vezes que seus gritos assustaram os pais que procuravam adoções. Lia, a mulher que administrava o orfanato, já tentara colocar o garoto num psicólogo, procurar saber o que se passava naquela mente pávida, mas a cada sessão, o único som audível era o dos ventiladores que movimentavam o ar. As palavras do menino se transformavam em silenciosos e calados gritos de socorro. Ele não dizia nada. Apenas sentava e observava o homem que lhe fazia as perguntas.
- Achei que já tivéssemos conversado sobre isso, Thomas! – Disse a senhora.
- Vó Lúcia, juro que não estou inventando. Ele está aqui, quer me pegar!
A mulher, lastimada, abraçou o garoto, confortando-o. As lágrimas do pobre, gotejavam sobre seu moletom de pano marrom. Ás vezes, por alguns segundos apenas, Lúcia gostava de acreditar que realmente havia algo no escuro. Que Thomas não herdara a insanidade da mãe. Aquela que fora internada a 13 anos atrás. Naiana Vil Mendes, símbolo do horror e desespero em Pedras Brancas. A mulher, matara o próprio marido e mais quatro pessoas, dizia que seus corpos estavam possuídos pelo próprio Diabo. Mais duas pessoas foram feridas numa tentativa de incêndio que a tal, provocou. O único fator bom na história, era que Thomas, não sabia ou lembrava-se de nada.
- Foi só um pesadelo, meu filho. Não há nada ali no escuro! Agora feche seus olhinhos e durma. Nunca se esqueça que seu anjo da guarda estará sempre a seu lado, se algo quiser lhe fazer mal! – Dizia a mulher, recostando a cabeça do garoto no travesseiro, trazendo calma novamente – Voltem a dormir, amanhã vocês tem aula e não quero ver ninguém acordando atrasado!
- Sim, Vó Lucia – Disseram todos, com a voz cansada e exausta.
A mulher, tirara do bolso, um pequeno bloquinho azul, para alguns uma luz noturna, para Thomas, a salvação. Colocara na tomada a seu lado, apagara a luz do quarto e sairá do cômodo.
O silêncio pairou no local. O medo do garoto ainda existia, mas já não era tanto. O que lhe reprimia agora, era a vergonha. Todos no quarto lhe encaravam, alguns até mesmo riam. O adolescente de 15 anos que tinha medo de escuro, isso era cômico entre eles.
- O mané, vai virar homem quando? – Perguntava Maurício, um dos garotos da cama ao lado.
Todos gargalharam, tirando sarro do menino. Mesmo com a luz, a noite de Thomas fora um terror só. Agora, além da chuva, risadas e cochichos eram ouvidos pelo quarto. Além das gotas melancólicas que escorriam sobre o rosto do menino. E ali, ainda na escuridão, a entidade permanecia a observá-lo. Esperando que os demais dormissem, para se aproximar novamente do menino e fazer, seja lá o que queria fazer.
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Olhos Negros - Nictofobia
HorrorA escuridão é habitada pelo oculto. Pelo horror e pelo desespero. Traz consigo o pior do imaginável. A razão pelo qual não dormimos a noite. Pela qual somos tachados como loucos. Mas nela, há realmente o que temer? Há algo que possa nos fazer mal? O...