Inércia

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  Era aula de Física. Um pé no saco. Inércia era a vida de um adolescente de 16 anos. Grande merda! Pode votar, mas não pode comprar bebida nem cigarro. A Gabi como sempre esticava a aula e fazia perguntas e mais perguntas. Tava na cara que ela era afim do professor, mas como era gostosa, além de representante da turma, ninguém falava nada.

   E eu ali... Perdido, olhando aquele relógio redondo em cima do quadro. Agora  entendia a inércia. A inércia era a preguiça! Como é que eu nunca tinha pensado nisso? Os corpos tendem a permanecer no estado em que estão. Se estão em movimento, não querem parar, se estão parados não querem se mover. Ninguém quer ser incomodado. O fato é que tinha alguma coisa errada. O ponteiro dos minutos não andava de jeito nenhum. Olhava meu relógio digital e os segundos corriam num tempo a parte. "Será o Benedito?" diria minha mãe.

  A aula era sobre isso. Parecia não querer parar. Uma vez iniciada não ia acabar nunca. "Deus por favor interceda! Toque a porcaria do sinal". Olhei ao redor. A prece parecia coletiva. A Lisa escrevia bilhetinho. O Naldo de cabeça baixa ouvia algum forró com letra pornográfica. Lá atrás Celinha, Bárbara e o emo do Danilo terminavam de discutir a apresentação do trabalho de literatura. O legal é que vi um saco de bombom com eles. Era só apertar a Celinha que ela ia descolar no intervalo uma das perguntas que eles sempre fazem nas apresentações deles. Participação espontânea, interatividade, como Big Brother. Mas perai? Ela piscou pra mim ou foi impressão? É, deve ser isso. Esse lance de 'inércia' ta me deixando doidão.

  Pensando bem essa parada permeia minha adolescência. Vejam vocês. Ainda bem que existe webcam e esses caralhos tecnológicos todos. Por que se tivesse que me descrever pra tentar parecer bonito estaria fodido. Mas imagino que a pessoa ao me ver, enxergue um garoto com os ombros pra frente, o cabelo bagunçado – desses que a televisão fez o favor de criar a modinha e que eles chamam de 'despojado', enquanto chamo de 'preguiça' –  um nariz gorduroso e alguns cravos. Tem o lado bom. Você faz amizade com alguma menina e, com sorte, em pouco tempo ganha um cafuné toda semana como se fosse um cachorro de marca. Opa! De raça, quis dizer. Já falei lá em casa que qualquer dia raspo essa porcaria. Só de rebeldia. Mas tenho preguiça. Ou inércia como queiram. Ai, num falei? Esse treco está na minha vida. Puta merda! Mas cá entre nós; acho que quando deslanchar não para mais. O quê? A minha vida oras bolas! Qualquer hora me levanto, vou lá na cadeira da Gabi e mando ela calar a boca pro bem geral da nação. Até porque, já tirei da cabeça esse sonho inalcançável de ter qualquer relacionamento com ela. Agora é rezar pra Celinha ter piscado pra mim, e para que alguém dê um toque nela. Que aquele tiozão do desenho sorridente e boa pinta do Cepacol lhe faça uma visita. Por que  que ela tem um bafo do cão!

 De resto é aguardar.

 

Cinco longos minutos depois...

— Licença professor. Bom dia turma! Estou passando aqui pra passar o recado da coordenação. Devido ao tempo seco e a baixa umidade o tempo de aula será reduzido como alguns de vocês sabem. – Ela fez uma pausa. Neguinho que estava dormindo até regressou do limbo. Mas eu sabia que a mão que acariciava era a mão que dava o tapa.  — De modo que não haverá intervalo essa semana. – Velho... Imagina a Nova Queda da Bastilha ali dentro. Ainda bem que não tinha colchão pra ser queimado. Por que numa coisa a coordenação tinha razão: Tava quente pra caralho! — E professor, acho que você vai ter que estender sua aula. A Marcela de Literatura está com problemas respiratórios e não pode vir.

 — Sem problema! Será um prazer. Não é turminha?

 Quero abrir um parênteses. Porra! "Turminha"? Imaginei todo mundo da sala de aula desenhado pelo Maurício de Sousa. Então era esse o sinal divino? Era esse o jogo? Não era difícil saber quem estava feliz ali. O grupo não ia mais se apresentar. Eu não ia comer bombom droga nenhuma e, se deixar, a Gabi ia 'ralar o Tchan' com professor.

— Tá comendo! Tá comendo que eu sei! – Me cutucou o Gustavo.

— Tá comendo o que meu jovem? Quem?

—  Anram, tá bom. Tá bom. – tossiu para enfatizar o tom conspiratório.

— Vai falar ou vai ficar nessa putaria de resmungar?
— Rapaz mas tu fala palavrão nheim?
— Tá comendo o quê rapaz, desembucha. – a essa altura já sabia, mas precisava ganhar tempo, ou melhor, gastá-lo.
— O professor!
— O que é que tem ele?
— Porra mais tu é burro pra burro.
— Olha o pleonasmo seu imbecil.
— O "pleo... o quê"?
— Porra cara! Como foi que você chegou até aqui?
— Que mané 'porra cara', larga a mão de ser esse intelectual transviado e entende logo que eu disse. Para o Gustavo, "transviado" deveria ser alguma coisa entre transexual e viado, ou os dois.
— Beleza, começa de novo.
— O professôôôr tá comendo a Gabi. – gesticulou o Gustavo com os braços pra frente e pra trás.
— Era isso? Você já foi mais inteligente sabia?
— E tu menos burro. Vai dizer que tu nunca pensou nisso?
— Nunca me passou pela cabeça. – Menti descaradamente.
— É anram. Tu é afim dela que eu sei. Mas também quem não é, com uma bunda daquele tamanho... Nós e a torcida do Corinthians inteira.

  Fiquei calado avaliando a situação. A bedel ainda estava na porta terminando o recado, mas eu não estava mais nem ai. Aproveitei a baderna para resolver em segundos que tipo de inércia minha vida seria: uma inércia em movimento ou se ia ser mais parada que criadouro do mosquito da dengue.

— Ih... Pisei no seu calo né? – algumas semanas atrás ele até estaria certo.
— To aqui pensando...
— Em quê? No Corinthians ou na Gabi?
— Em algo bem mais profundo.
—Em sexo né? O homem se não está pensando em trabalho, nem no lazer, só pode estar pensando em sexo.
— Tu é um pervertido Gustavo. Se a gente fica em silêncio um pouco que seja, você já pensa merda. Tá doido!
— E desde quando sexo é merda?
— Sexo anal de vez em quando vira merda...
— Moleque tu é um escroto! Depois fala de mim. Mas diz ai, tava pensando em quê? – tive de me render, não dava mais pra adiar.
—  Pô... Na inércia.
—  A fala sério. Tu tá doido pra sair daqui to errado?
—  Pior que não. Te explico esse lance outra hora.
— Tu é foda. – resmungou retornando a carteira para o lugar, já atraído por outro assunto.

  A essa hora a bedel já tinha dado no pé. O professor já estava falando de inércia novamente e o dedão da Gabi já estava apontando pro céu. O Naldo coitado, tinha meio litro de baba na carteira. Foi então que veio o inesperado. Uma luz no fim do túnel. Um papel dobrado?

— Opa! Que que tem ai? – apareceu Gustavo do nada, interceptando o papel que estava mais embrulhado que Caldo Knor.
— Espera ai deixa eu ler...

"Oi amigo!
Como é que tá? Sabia que você é o amigo mais lindo de lindo da sala toda? Vai ficar mais lindo ainda quando mandar a VACA da Gabi calar a boca. Mas tem que ser alto ok? E ai? Tem coragem?
Bjão Lisa
"

—  Essa é boa! Pago teu lanche no intervalo se tu for.
—  Não temos intervalo seu imbecil!
—  E tu num tem coragem.
—  Até parece! Olha só!

  Suei frio. Levantei bem no momento em que a Gabi estava fazendo uma pergunta. Eu teria muito tempo para refletir depois.

— Gabi! Ô Gabi! Dá um tempo cara. Cala essa boca só um minuto pra gente ter paz aqui.  Você já aprendeu a Primeira Lei de Newton, podia aprender a Lei do Silêncio né?

—  Oxe seu escroto! Se liga.

  Sentei. Tava doido pra rir, pra me juntar ao riso coletivo. O professor recobrou a compostura e começou a declamar um poema sobre ética e educação que atingiu os corações puritanos das vítimas do 'bullying'. Quanto a mim, estava em outro planeta. Pelo menos a turma ganhou outros ares de 'não inércia'. O Gustavo ria como um sapo gripado (se é que você consegue imaginar um). A Lisa nem se fala. O que está feito está feito. Já dava braçadas na merda mesmo. Se o relógio ia ou não andar era outro assunto.

  E quer saber? Às favas com a inércia! Por que a gente só descobre se a vida andou ou parou depois que ela passa. Agora  já estava pensando em outra coisa.Como é que eu me meti nessa. Agi de supetão e ainda me recuperava quando outro pensamento surgiu:

  "Ímpeto é força motriz ou matriz?". Dane-se! A aula de gramática é amanhã.


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⏰ Última atualização: Jan 18, 2016 ⏰

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