Capítulo 1

5 1 0
                                    

Onde o leitor conhece Mariana e esta, por sua vez, um macete para calcular potenciação que de fácil não tem nada

Quanto mais a professora falava sobre a imensidão das camadas atmosféricas, mais Mariana afundava-se em sua cadeira, muito longe do céu e da necessidade de manter-se atenta. Ela sempre fazia um uso inadequado das informações que a escola lhe transmitia: por exemplo, embora fantasiasse constantemente a respeito das placas tectônicas (pegava-se pensando em mergulhos terrestres, placa sobre placa, ela própria uma mergulhadora litosférica catando conchas em busca do núcleo da Terra), tomou bomba na prova de Geo: nota 3. E Biologia, então? Esta matéria era seu terror: confundia as girafas de Lamarck com as ervilhas de Mendel. Na sua cabeça eram todos amigos: Lutero, após pregar as 95 teses na catedral de Wittemberg, convidou Darwin para uma corrida montada nas tartarugas de Galápagos, mas este não podia: foi mal Lutero, hoje vou dar rolê com Marie Curie, a rainha do rádio.

-- Mas Darw, ela não tem namorado????

-- E eu lá sei??? - E sai rapidamente galopando sua tartaruga galopeira.

A menina nem desconfia que galopar tartaruga é pura figura de linguagem; a professora não passou esse assunto e vários outros devido à greve do sindicato estadual. Mariana tem 14 anos e está no primeiro ano do Ensino Médio da Escola de Educação Básica João Baptista de Oliveira Figueiredo. Nunca leu uma obra de Julio Verne e, ao longo de sua vida, nunca lerá. Tem horror a baratas, não conhece o patrono de sua escola e mora apenas com sua mãe, numa casa alugada no bairro de Espinheiros, em Itajaí/SC. Ela nunca conheceu seu pai, morto numa noite de intensa ressaca e nenhuma estrela no céu, em Imbituba. No quarto dela, há infiltrações e goteiras, e em noites de chuva ela não dorme, a menos que consiga concentrar-se nos mergulhos litósfericos ou quem sabe no romance entre os números 17 e 29, números primos cujo amor é proibido pelos preconceitos da família, bando de irracionais enrustidos. Mas quase sempre a chuva insiste, vence o drama das histórias românticas como se fosse um plantão jornalístico a furar a programação, trazendo à tona os pensamentos mais negativos de Mariana: essa água que se infiltra pelas paredes é a mesma que tomou o barco de seu pai, Anselmo; essa água vai sempre escorrer nessa casa de onde nunca provavelmente sairá; viverá em constante estado de ressaca enquanto a maioria das pessoas vivem tranquilas, em eterna marola, uma vida segura feita de piscinas, boias, aquários.

-- E aí, galera, fica fácil: dessa forma, a potência de vocês é convertida em uma simples multiplicação.

Geo, História, Artes, Português, e agora a de Matemática. Falta só mais uma aula de Biologia para, enfim, ela poder chegar em casa e jogar sua mochila sobre o sofá. Dentro da bolsa, dois cadernos, dezenas de papeis de bala, uma banana, dois reais em moedas e um peixe cinza de pelúcia. A menina abre a última bala enquanto Zulmira e Thiago, os docentes, trocam cumprimentos na porta da sala. Faz um calor infernal em Itajaí, batalha sempre perdida pelos ventiladores das escolas públicas.

-- Bom dia, amiguinhos! Hoje é dia de sortearmos a classe que cada equipe vai pesquisar no trabalho sobre o Reino Animalia, hein.

Até o final da aula, Mariana se dará conta de que os peixes integram algumas classes do tal Reino; será tarde demais, sua equipe, na verdade uma dupla formada com o Yago, receberá a classe das aves, mais uma frustração para a conta do dia (e ainda nem são 12 horas). Ambos deverão pesquisar características anatômicas, reprodutivas, alimentares, entre outros aspectos sonolentos. Se ganhasse a classe dos peixes... os peixes ósseos, ah, aí acharia o trabalho muito legal. Se ganhasse essa classe, poderia falar das coisas que sabe acerca dos peixes, coisas que sua mãe lhe contou sobre o trabalho do pai: que há tempos em que não se pode pescar nada, a época do defeso, a fim de proteger os peixes e deixá-los namorar um pouco em paz. Explicaria também que há os peixes de água doce, que há até peixes criados em cativeiro, infelizmente. Se ganhasse do professor Thiago essa classe, pesquisaria tudo sobre eles, até mesmo o que os peixes curtem fazer no final de semana, quando as praias estão cheias de banhistas e eles têm que obrigatoriamente sair de casa. Quem sabe até poderia usar a Antonieta para ilustrar algo na explicação!!!!!! Não, melhor não. Todo mundo implica com o fato dela andar por aí com ela e ainda dormir abraçada com Antonieta, afinal adolescência não é mais idade para se ter pelúcias; inventar isso seria só mais um motivo para que seus colegas fizessem chacota com ela e Yago, os dois alunos mais excluídos do 1ºB. Mariana, ao final da aula, enquanto arruma o material, dá uma última olhada em seu bicho: entre dois cadernos, com a cauda melecada de banana, Antonieta está lá, silenciosa e inexpressiva como sempre. Você é um bicho, Antonieta. Queria que você falasse, que me ouvisse. Mas você é um bicho, Antonieta, uma vassala, e não pode pertencer ao Reino Animalia.

O sinal é estridente e nervoso, mas gera felicidade em todos os alunos e funcionários. Mariana está morrendo de fome, até porque preferiu não comer a fruta que levara para o lanche. Provavelmente, esqueceu de tirar da mochila; além de distraída, é esquecida. Após dez minutos de caminhada, está diante do portão de ferro e da pequena casa onde mora com sua mãe, Dona Mariza. Antes de entrar, como boa filha que é, limpa os pés no tapete barato. Antes de entrar, infeliz que é, suspira longamente, e então sente, antês de vê-lo, o sabor do almoço: hoje há ovo frito, feijão, arroz e batata doce. Mariana dá um beijo na mãe, uma senhora baixa e gorda de 40 anos, mesma altura da filha, e corre lavar as mãos. As mãos de sua mãe são envelhecidas, gastas pelo trabalho duplo, na casa e no carrinho lanche que Mariza administra e hoje, particularmente, cheiram a alho. Elas não são lavadas antes do almoço; o pano de louça cumpre a função. Enquanto mãe e filha colocam a mesa, Mariana ouve, mais uma vez, uma série de reclamações da mãe: o preço do feijão vermelho, a falta de sol para estender as roupas, a necessidade de Mari conservar seu uniforme limpo, retirando-o antes de comer. Ai, mãe, que saco.

Por um momento, enquanto procurava um garfo e uma faca no gaveteiro (as cores nunca combinavam naquele misto de jogos de talheres e suas tantas peças faltantes), alheia à fala reclamatória da mãe, Mariana desejou que também houvesse para a vida dela um defeso: ah se, de janeiro a fevereiro, ou quem sabe de sexta a domingo, das três às seis da tarde de cada dia, ah se houvesse um intervalo da vida no qual, obrigatoriamente, ninguém pudesse pescá-la de seus pensamentos, seja para passar pano na sala ou estudar Química ou sorrir e arrumar-se para prostrar-se diante de visitas. Mariana era distraída e, como toda pessoa perdida, ofendia-se com interrupções utilitárias: vá tirar o lixo, Mariana, vá até o quadro e resolva o problema, pisque de volta pra ele , Mari, responda minha mensagem logo, eu sei que você a visualizou, Mariana.

-- Ow, Mariana, eu tô falando contigo, tapada. Me passa a batata doce.

Um defeso. Um defeso para a proteção da espécie das tapadas.

TainhasWhere stories live. Discover now