Capítulo 10 - Ojeriza

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  "Era 6 horas e eu ainda estava acordada. Eu podia sentir o cansaço espalhado por cantos estratégicos em meu corpo. Podia sentir meus olhos pesando por horas, mas eu simplesmente não conseguia dormir. Forcei-me, em meio minha necessidade quase urgente de permanecer ali deitada pra sempre a me colocar de pé e ir em direção ao computador. Caminhei até a mesa do quarto que dá para a janela, e aqui estou. Pude ver o sol nascer e os pássaros começarem o dia de trabalho. Observei o pai de Lethícia sair pela porta da frente e abrir o carro que estava na calçada. Vi que algumas pessoas caminhavam com seus cachorros e outras se arrastavam para casa logo cedo, talvez após uma festa de domingo. Eu poderia fazer tudo aquilo que pessoas da minha idade faziam, mas preferia ficar presa na obscuridade de meus pensamentos."

Maria Clara podia sentir o cheiro de café que vinha da casa da vizinha ao lado. Ouvir o cãozinho Bob latindo na escada da frente e o gato ronronar na varanda. A casa era bem próxima a sua, e qualquer cheiro ou ruído era praticamente compartilhado. Fechando seus olhos levemente, ela poderia sentir que seu coração parecia menos agitado que no dia anterior.

A perturbação não tocava mais sua alma com força e impiedade. Seus sentimentos pareciam estar estagnados, mas não na parte boa e agradável da vida. Se conformar ou tomar força de algo, pode ser bom para casos onde a atual estagnação está. Clara sabia que não era esse tipo de conformidade que ela estava assumindo. Sabia que estava inerte ao momento de felicidade que poderia ter. Estava no mesmo lugar onde sempre esteve. Na dor da perda, não só de sua mãe, mas do seu verdadeiro eu.

No momento da falta da felicidade, não conseguimos enxergar aquele feixe de luz lá no fundo do túnel. Vemos apenas a escuridão em volta e é ali mesmo que queremos ou não ficar. Aquele silêncio muita das vezes pode ser visto como paz, mas para muitos que não se acostumam a isso, chamam de falta de alegria.

É no decorrer dos anos que aprendemos que somos resilientes e com isso passamos por várias situações, ora boas ora ruins, e conseguimos voltar ao nosso estado inicial, embora com algumas leves deformações. Eu queria poder saber o que Clara estava sentindo de verdade, mas só ela sabe. Só quem vive sabe. Quem observa apenas julga saber.

Ainda escrevendo e observando o dia, Maria soube que tudo que ela precisava era um momento de desapego, de tudo aquilo que te levava ao passado. Que a fazia retroceder e alcançar o indesejável.

Somos feitos de memórias, sejam elas boas, superficiais, fúteis ou dolorosas. Todos vivemos em um tempo, e onde não há passado, não há presente, e nem mesmo o futuro. Todos passamos por adversidades mas nem sempre sabemos lidar com elas. Todos somos julgados na mesma medida que julgamos. Todos nós erramos. Pecamos. Sobrevivemos. Amamos.

Apesar de algumas gotas escorrerem eu seu rosto, Maria secava na mesma velocidade que elas desciam por sua face aveludada. Sentada em sua cadeira de madeira, disposta a escrever tudo que a preenchia naquele momento, fechou os olhos de forma apertada pedindo que coisas boas viessem em sua memória.

"Abri a janela na esperança que um ar quente entrasse para aquecer meu corpo que insistia em permanecer frio."

De forma repentina, Clara pôde ouvir a porta da sala bater, mas sem nenhuma vontade de saber quem era, apenas continuou ali sentada, debruçada sobre a mesa que era mais importante que qualquer pessoa que pudera entrar ou sair de sua casa. A capacidade de se desprender de pessoas nunca foi seu forte, mas ultimamente, nem mesmo Lethícia era uma de suas prioridades. Nem mesmo sua melhor amiga.

Logo assim que terminou de escrever boa parte de sua lenta manhã, Maria percorreu o quarto, andando de um canto a outro não parecendo muito tranquila. Passando a mão sobre o cabelo, lembrou de algo que não parecia tão importante há um tempo.

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