A Casa Redonda

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Diogo desembarcou do Peugeot prateado de seu amigo, agradecendo a carona e pedindo quanto devia, como de costume. O motorista simplesmente balançou o braço e respondeu que somente a amizade e a companhia durante o percurso já era um bom pagamento. Então, desejou uma boa noite e começou a descer a ladeira que levava até seu apartamento. Todas as noites voltava com Flávio, seu amigo e colega no curso de artes. Cursavam o ultimo semestre, e logo estariam dispersando todas as suas maravilhosas criações pelo mundo.

Diogo descia o longo caminho distraído, com os fones dependurados no ouvido liberando um baixo e leve som de jazz. Repetia aquele trajeto desregular de paralelepípedos soltos toda madrugada e, como toda madrugada, ansiava por vislumbrar A Casa Redonda na esquina anterior ao Residencial Lírio. Somente três coisas o admiravam tanto ao ponto de tirar o fôlego: o poderio de relâmpagos de uma tempestade, o céu pontuado de estrelas da meia noite e A Casa Redonda. Uma arquitetura deslumbrante e rara aos olhos de forasteiros, podendo alguns considerar estranha, mas não Diogo. Diogo ficava parado durante longos minutos na frente de seu majestoso portão enferrujado coberto com heras e rosas brancas. Deslumbrava-se com os pilares grossos que apoiavam a cobertura maciça da sacada de entrada, semelhante às antigas colunas dos templos gregos. A construção de três andares, parecendo uma grande pipa de vinho, com escadas externas ligando cada cômodo diferente. Um par enorme de portas guardava a entrada, com correntes unidas por um cadeado velho que impedia a entrada de estranhos. Janelas exuberantes, de todos os tamanhos e formas, apontando para todas as direções, agora lacradas por taipas de madeira pregadas, escondendo e protegendo as histórias e segredos antigos do belo passado que a construção presenciou. Mas o que mais o surpreendia era o material dela, toda feita do que supunha ser mármore, pois sua cor era branca como ossos a muito descarnados e limpos. Um branco puro, belíssimo.

Seus pais contavam que a casa pertencia a uma família de médicos, que passavam o verão na localidade, e de um ano a outro simplesmente não voltaram mais. Alguns homens vieram com um caminhão, carregaram algumas coisas, selaram as janelas e as portas daquela maneira, partindo logo em seguida. Deixando a casa ali, livre para a apreciação e imaginação de Diogo. A residência, afirmava sua avó, não fora construída pelos médicos, mas sim por fazendeiros que vieram nas primeiras embarcações de colonos, fugindo da perseguição religiosa de suas antigas nações. Nada disso ele podia confirmar, nem nunca poderia, limitando-se a observar e apreciar.

Certa noite, novamente voltando do curso com chuva atingindo seu guarda-chuva, parou para ver A Casa Redonda. A rua escura e deserta só ressaltava o brilho dela no luar úmido. Ela estava particularmente bela aquela noite e Diogo permitiu-se observar por mais tempo. Em meio aos seus devaneios, uma aranha saída de algum buraco o assustou. Desviou o olhar da casa por um momento, para liberar-se do aracnídeo que subia em seu sapato preto. Um cachorro ao longe começou a latir com muita potência, fazendo-o ficar mais tempo sem prestar a atenção na construção. Quando retornou seu olhar, percebeu estupefato algo inédito.

Luzes saiam das frestas entre as madeiras, uma luz colorida, viva, atraente. As correntes que prendiam as portas encontravam-se caídas nos degraus da entrada. O portão havia sido expurgado de toda hera e ferrugem que o maquiavam antes. E o branco da casa ofuscava a visão. Finalmente a casa respondia aos seus sonhos.

As portas lentamente se abriram, trazendo ao mundo a luz aprisionada. Através desse halo luminoso, uma figura surgiu, uma mulher. Uma cascata de cabelos negros descia sobre suas costas e ombros. Um corpo esguio e delineado sob um vestido linho branco, acompanhado de belas pernas longas sustentadas por um par de sapatos de salto alto. Mesmo a distância, Diogo vislumbrou os olhos verdes brilhantes, duas esmeraldas naquela tempestade de branco. Parou no umbral da porta, em uma posição convidativa. Os neurônios dele trabalharam por um instante, afirmando que aquilo ali não fazia sentido e que entrar na casa seria um erro. Porém seus sentimentos e desejos falaram mais alto, o desejo de descobrir o passado ali enjaulado, o desejo de viajar pelas histórias e noite imemoráveis da casa que há tanto tempo o fascinava. Aceitou o convite, passando pelos portões e seguindo o caminho de pedras polidas até a entrada. Lá, a mulher estendeu-lhe a mão. Ele segurou-a com gentileza devota, sentindo o frio toque dos dedos finos de unhas pintadas na cor vermelha.

Adentrou a residência, um local belo, mobiliado com coisas caras e decorações exóticas. Tudo possuía o cheiro inebriante de maçãs e a beleza de sua acompanhante superava tudo. No salão da cozinha, dançaram a noite toda, enquanto ela contava as histórias que a muito ele deseja descobrir. A voz suave não provinha de seus delicados lábios, mas brotava em sua mente, como uma canção de pássaros silvestres. Passearam por castelos antigos, acompanharam acontecimentos mitológicos e vivenciaram as encantadoras gestas nunca contadas da humanidade. O universo se abriu perante o par, e eles dançaram sobre as estrelas e sóis mortos, deparando-se com a fronteira do incompreensível e do inimaginável.

Durante todo esse tempo, ele nunca desgrudou os olhos da bela mulher, perdido em suas curvas e movimentos. Sentia que estava apaixonado e faria qualquer coisa para ganhar seu coração. Quando o baile do casal chegou ao fim, ela sentou-o em uma majestosa poltrona, novamente na sala da Casa Redonda. Então, finalmente, ela falou com sua voz de verdade. Uma voz que contrastava com a beleza da anterior, uma voz tenebrosa, que fez todos os pelos de seu corpo arrepiar:

- Bem, acredito que seja o suficiente.

Tão logo pontou a frase, seu corpo se transformou. Sua face já não era mais bela, mas sim a de uma criatura horrenda. Diogo não conseguiu identificar, pois a ação seguinte foi muito rápida. As mandíbulas do ser se abriram, revelando incontáveis fileiras de dentes. Em um movimento caíram como guilhotinas em seu pescoço, sentiu uma dor indescritível, então, o vazio. Logo a escuridão sem som foi substituída por calor e fogo. Viajava novamente, mas não pelas atmosferas de beleza anteriores e sim por locais de incontável terror. Rituais realizavam-se em buracos profanos, sacrifícios e oferendas a deuses antigos, anteriores a época dos homens. Criaturas voavam e destripavam pessoas penduradas sobre um fogo invisível que ardia sem trégua. Gigantescas criaturas, montadas por coisas que a mente não conseguia conceber, pisavam sobre prisioneiros alquebrados que sangravam sem a capacidade de morrer, condenados ao sofrimento eterno. Do céu negro e sem estrelas, visualizava gigantescos planetas colados à órbita daquele local, e deles eram desprendidos gritos de agonia que fizeram Diogo chorar. Ele visualizava todas aquelas horrendas cenas de algum lugar, sem conseguir se mexer ou sequer movimentar o pescoço. Sua mente não aguentava mais, chorava e tremia incontrolavelmente e então, tudo se apagou novamente.

Acordou na calçada em frente à Casa Redonda, policiais e homens vestidos de branco o cercavam. Duas viaturas e uma ambulância estavam estacionadas do outro lado. O cachorro continuava a latir, com fôlego interminável. Pessoas que por ali passavam, olhavam-no aturdidos. Diogo só chorava, sem parar, balançando-se para frente e para trás sentado no chão, seu espírito destruído. Em sua mão encontrava-se uma folha de papel com um desenho gravado com lápis em linhas escuras e fortes. O belíssimo traço apresentava o retrato de uma figura feminina, um corpo maravilhoso e esguio, com contornos definidos encantadoramente. Nas suas costas, dois pares de asas angelicais surgiam. Não tinha face, mas um escaravelho enorme em seu lugar.

Conduziram o homem que chorava e gritava até a ambulância, após para uma instituição psiquiátrica, onde foi internado. Todos os tratamentos foram aplicados, nenhum surtiu efeito. Comia pouco e quase nunca dormia, e nas ocasiões que o fazia acordava no meio da noite gritando. Chorava o dia inteiro, mesmo sem mais capacidade de produzir lágrimas. Não reconhecia ninguém mais, nem conseguia falar o próprio nome. As paredes de seu quarto na instituição eram todas desenhadas. Criaturas jamais vistas, locais nunca visitados, símbolos e línguas impronunciáveis. Mas no centro de tudo isso, em um tamanho gigantesco, os retratos da figura feminina e da Casa Redonda dominavam. Nos momentos que conseguia parar de chorar e se controlar, tentava descrever aos médicos o que havia acontecido, mas nenhum acreditava. Todos falavam que ele tinha sofrido um grande trauma, e aquelas lembranças não passavam de delírios. Então, ele voltava a chorar.

Nada mais era real, somente A Casa Redonda.


A Casa RedondaWhere stories live. Discover now